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sábado, 5 de novembro de 2011

Virtuosidade




Frei Vitório Mazzuco, OFM*
    
    A pessoa humana vale não pelo que acumula de material, mas pelos princípios, valores e virtudes que possui, que cultiva e que deixa transparecer em sua vivência e práticas. A finalidade desta nossa reflexão, neste nosso percurso é despertar para a constante motivação em alcançar o desenvolvimento espiritual e humano; elevar a uma reta compreensão, uma reta aspiração, a um  reto falar e o reto agir. A retidão é colocar novamente o humano em pé; torná-lo forte, convicto; espécie muito diferenciada; reencantar o “homo erectus”, aquele  que não rasteja, não decai, e não perde a sua vitalidade. A pessoa virtuosa vive a reconstrução diária da sua vida e, por isso, a sua alma virtuosa está acima de tudo.

    Como dizíamos na introdução desta reflexão, é preciso buscar uma original qualidade pessoal (ética), despertar cada momento a força divina que adormece em nós  (espiritualidade) e viver uma transformação (a evolução do humano). Esta é a função da Virtuosidade: acordar, provocar, fazer crescer  na busca incansável do bem. É transmitir vida intensamente! Gosto demais da fala do Mestre Hindu, Bhagwan Shree Rajneesh, quando diz: “Se você coloca uma rosa num aposento... aquele aposento nunca mais será o mesmo; porque a rosa tem a sua aura, o perfume, o seu vigor próprio, a forte presença”. Assim também é a permanência da pessoa virtuosa.  A pessoa virtuosa é uma presença qualificada e especial; ela é uma resposta de que é possível o humano , ao buscar virtudes que elevam a  sua vida,  subir para o patamar mais elevado da sua existência,  tornando mais potente a sua energia e mais intenso o seu brilho e o ensinamento que pode oferecer. A virtuosidade faz a pessoa florescer por dentro, e a sua beleza interior salta para fora mudando pessoas e o ambiente.

    Quando você encontra e vive a virtude, ela aparece em todos os escritos, em todos os exemplos, em todos os ensinamentos e em todas as pessoas que marcam sua história. Quando você se mede com as virtudes, percebe que nem sempre esteve no melhor caminho; porém não existe virtude que não se reerga sem que tivesse havido um extravio, uma perambulação, um perder-se. É no perder-se que se dá uma forte experiência do encontro. O prefácio pascal tem seu brado: “Feliz culpa que mereceu um Salvador!” A busca virtuosa traz a beleza do reencontro com a  experiência do melhor. Tudo é belo! As experiências são bem-vindas. Até o pecado tem a sua expressividade porque dá profundeza para voltar às trilhas da santidade. Grandes santos e santas sempre se julgaram grandes pecadores. Nos seus limites, buscaram a sabedoria do caminho virtuoso e tornaram-se mestres da pureza original e da beleza única. Não se detiveram na culpa, mas fizeram dela trampolim para um grande salto, o salto qualitativo, o mergulho no esvaziamento de si, para deixar que o Divino tomasse conta do ser. Não criaram barreiras para a qualidade da vida entrar no mais íntimo  e saísse pelos poros onde suaram as boas obras. Para que a luz das virtudes e o conjunto delas,  que cria a virtuosidade , se derrame no ser, é preciso exercício, esforço, persistência, busca incansável da constante atenção aos valores maiores. É a ascese de quem quer se superar. É a disciplina focada em moldar o melhor do humano. Este esforço traz um profundo conhecimento, e este modo de conhecer traz um modo de ser. A virtuosidade se encarna em pessoas reais. O humano é um espírito que se fez carne, como a Carne do Verbo que se fez carne na carne do humano. Por isso, só podemos conhecer verdades encarnadas, virtudes encarnadas em alguém. Há no ser humano uma representação concreta do Divino que trouxe para ele uma proposta de boa nova, de mudança das estruturas, da beleza do “Eu sou!”

Não precisamos desesperar se não conseguirmos chegar de imediato à virtuosidade, isto é, a um conjunto ideal de virtudes. Basta viver uma virtude para vivermos todas. É preciso estar numa virtude, e, através dela ouvir e abraçar todas as outras. O dom é natural; a virtude é conquistada. A virtude é sempre o dom de uma conquista, de um lançar-se, de uma disciplina determinada. As virtudes nos fortalecem. Enfraquecemos quando não temos o vigor de buscar o melhor. Não podemos nivelar a nossa vida por baixo.  Não podemos viver na mediocridade. Betinho, o grande profeta da cidadania, o nosso eterno Hebert de Souza, dizia pouco antes da sua morte: “Se aprendi algo com os cristãos, é que a vida cristã não é para medíocres”.

    O tema de hoje é a Virtuosidade. Mas o que é a Virtuosidade? É aprender a ser; é criar uma personalidade moral; é ter bases sólidas para formular um juízo de valor. A virtuosidade ajuda a construir uma identidade honesta e leal que leva a uma conduta fundamentada em valores. A virtuosidade dá força ao indivíduo e brilho a sua singularidade.

    A virtuosidade encarnada nas pessoas transborda e energiza o social. Individualidades fortes criam grupos  humanos fortes; indivíduos criam uma moral social. A virtuosidade nos leva a perguntar: Qual o critério fundamental da nossa vida? Qual é o fundamento do nosso existir? Não estamos prontos ainda. Existe ainda uma verdade, uma virtude não conquistada e não realizada. A virtuosidade é a fome e a sede de ser. É a tecitura onde vamos moldando a vida e o vigor de existir que nos leva a ser mais humanos. É dinamismo de uma conquista diária; um impulso de amor que faz viver numa determinada direção.

    A legenda medieval franciscana, conhecida como o Anônimo Perusino, no Capítulo 6,27, diz: “E assim se esforçavam por contrapor  aos vícios cada uma das virtudes”. Cada virtude combate vigorosamente os vícios. É a força moral diante das forças contrárias. Como diz São Francisco de Assis, nas suas Admoestações 27, cujo título é  “A virtude que afugenta o vício”:

“Onde há caridade e sabedoria, aí não há temor nem ignorância. Onde há paciência e humildade, aí não há nem ira nem perturbação. Onde há pobreza com alegria, aí não há ganância nem avareza. Onde há quietude e meditação, aí não há preocupação nem divagação. Onde há o temor do Senhor para guardar seus átrios, aí o inimigo não tem lugar para entrar. Onde há misericórdia e discernimento, aí não há nem superfluidade nem rigidez”.

    Voltemos mais uma vez à pergunta: O que é a Virtuosidade? É caminho em busca da identidade humana; ter um ideal humanista na construção da qualidade. É a maneira de dominar a quantidade em favor da qualidade. É criar uma personalidade espiritual e social; é construir uma estética de sensibilidade, leveza, delicadeza, gentileza nas atitudes e relações. O que faz alguém feliz? É o seu modo de proceder em consonância com as virtudes abraçadas. Ser feliz e realizado é uma necessidade moral. É a liberdade de agir a partir do princípio do melhor. Quem age a partir do princípio do melhor é eticamente bom.

    É preciso semear virtudes na horta da virtuosidade para colher os melhores frutos do humano bom; e através da detalhada semente, buscar a semente da inteireza. Temos que trabalhar com a semente inteira que somos; assim ela pode crescer frondosa, buscar as alturas, revelar-se na aridez do mundo do antivalor. Uma vez que abraçamos a virtuosidade como caminho para buscar a riqueza interior, não há nada comparável no mundo exterior. “Se você negar a semente, como aplaudir a árvore?” A pessoa humana é uma semente que pode ser uma grande árvore. Ela tem que desabrochar divinamente. Pelos caminhos da virtuosidade, cada ser humano pode ser sagrado. Não podemos sufocar a semente; temos que dar a ela a oportuna chance e cuidado para o crescimento. Ser semente é já ser uma força! Como diz um provérbio árabe: “Ser semente já é o gosto de ser árvore!”


* Frei Vitório Mazzuco cursou Teologia e Filosofia, em Petrópolis, e fez pós-graduação em Teologia Espiritual, na Pontificia Università Antonianum, em Roma, obtendo o mestrado. Sua tesina, publicada em forma de livro, leva por título: “Francisco de Assis e o modelo de amor cortes-cavaleiresco: elementos cavaleirescos na personalidade e espiritualidade de Francisco de Assis” (Vozes 1994). Atualmente, ele é reitor do Santuário de Santo Antônio, no Largo da Carioca, na cidade do Rio de Janeiro, professor de Franciscanismo, em Piracicaba, no Rio de Janeiro e em Petrópolis. Também é pesquisador do IFAN (Instituto Franciscano de Antropologia), entidade ligada à Universidade São Francisco de Assis, em Bragança Paulista, e dedicada às áreas de Franciscanismo, Teologia e Ciências da Religião, Estudos Humanísticos, Estudos da Cultura Moderna e Pastoral. 

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