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segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Os Dons do Espírito

"O dom da vida e os dons do Espírito
são os arranjos mais belos da nossa casa."

Frei Vitório Mazzuco, OFM* 



    Temos sempre saudades daquele momento bom que criou em nós a permanência na casa. A  casa foi e é o fundamento da nossa cultura, da nossa fé, da nossa educação, das nossas vivências e convivências, lugar de onde partimos para a vida e para onde sempre retornamos. O que aprendemos ali colocou em ação a beleza da vida. Casa é  dom. A palavra  dom pode ser associada a domus. Os dons são valores naturais da nossa casa; nascemos e fomos naturalmente formados nestes valores. Dominus é o Senhor da casa. Donna, Domina, a Senhora da casa.... Duomo de Milão....a imponente e gótica  casa de Deus.

    Toda atividade que fazemos é a nossa concreta resposta ao Dom da Vida. O mundo da vida provoca  e cria em nós os conceitos. Por isso, chegou o momento de refletirmos sobre o Dom da Vida, os Dons e Frutos do Espírito. O que significa esta reflexão? Ela nos recorda que é preciso a valorização da experiência das profundezas e da plenitude da existência. A nossa existência é fatual, isto é, uma real soma de acontecimentos, mas não se esgota nos fatos. Ela é necessariamente a experiência de alguém buscando os sentidos de existir. O dom da vida e os dons do Espírito são os arranjos mais  belos da nossa casa. Vale lembrar aqui um texto budista que diz:
                        “Não crie sofrimento.
                          Pratique virtude!
                          Seja senhor de sua mente e de seu lugar.
                          Eis o ensinamento:
                          Que todos de sua casa
                          Possam se beneficiar!” 



    Dons e Frutos do Espírito precisam ser buscados e cultivados. Há sempre uma verdade ainda não realizada, uma virtude ainda não vivida em nós. Dons e Frutos propõem um elenco de virtudes que são como  uma escada que precisamos para entrar e sair da casa. A nossa casa nos coloca no mundo, mas com qualidade. Quem pode formular os mais belos juízos, ter as mais pelas aproximações e os mais maduros relacionamentos? Quem esteve na escuta cuidadosa das virtudes, no observar a vida das pessoas virtuosas e na prática pessoal da virtuosidade. A nossa casa ( o Dom ) permite as virtudes. A nossa casa faz a festa do humano e nos leva para a festa da convivência humana com qualidade. Dons e Frutos nos preparam para sermos apóstolos do humano. O que caracteriza o estar em casa, o que dá sentido a cada momento da casa, é a virtude. Se não cultivar a virtude a casa não fica arrumada, a vivência se atrofia.

    Temos sempre a tendência de  rotular as pessoas como boas ou más. Isto não é correto. Pelo fato de pertencer a espécie humana e estar sob o domínio do Dominus ( o Senhor da Casa) ela é sempre um valor. Em vez de julgarmos se alguém é bom ou mau devemos cultivar um contato verdadeiro e ajudar a pessoa a buscar o Dominus ( o Senhor da Casa e seus Dons ), ajudar a pessoa a ter um Mestre. Ajudar alguém a cultivar a realização, a felicidade. Tirá-la  do medo e do investimento no pouco e no limitado. O que muitos chamam de felicidade é apenas 5% do que é realmente a felicidade.  Temos que perguntar: Você tem plena certeza de que o sentimento que coloca você perto de alguém é o caminho virtuoso de Amor,  ou é o medo de ficar só? Você tem certeza de que a felicidade é só qualquer relação, ou apenas sexo, ou apenas bem estar? Não podemos duvidar que as pessoas queiram amar, busquem o amor e saibam amar; porém muitos amam com medo. Medo da solidão. Medo de não dar uma satisfação para a sociedade ou para grupos humanos, inclusive grupos religiosos; um medo que cria uma dependência: tenho que estar ali e justificar como e com quem estou. Medo de parceiros, amigos, familiares. Um medo que não cria naturalidade, mas transforma a pessoa numa sanguessuga, uma esponja de carências.

    Dons e Frutos são elementos necessários para construir e reconstruir a casa forte e ideal. Quem disse que não existe pessoa  ideal ? Pessoa ideal tem um ideal de busca virtuosa. Está sempre buscando o aperfeiçoamento espiritual, emocional, físico. Busca e cultiva um desenvolvimento. Em quantas pessoas, homens e mulheres, não encontramos a confiança, força, liderança, proteção, sustento, objetividade, flexibilidade, sensibilidade, carinho, sinceridade, sabedoria, suavidade, afetividade,  sexualidade...Pessoas que tem objetivos claros. Quanto mais alto o objetivo mais alto chega ao patamar de sua vida vivida com inspiração. Quantas pessoas que encontramos que tem o prazer em viver, tem prazer em cada inspiração, sorriso leve e fácil, e que não despreza nada e ninguém.

    Falemos dos  Dons do Espírito um tema não muito trabalhado. Hoje quando se fala de Espírito Santo se restringe à força dos movimentos. Invoca-se o Espírito Santo, mas se reflete pouco sobre os Sete Dons, que já estiveram mais presentes na piedade e devoção. A reflexão teológica do ocidente concentra-se mais em Jesus Cristo; é na reflexão teológica do oriente que o Espírito Santo está mais presente. Quando se fala da Santíssima Trindade e do envolvimento amoroso das Três  Pessoas Divinas o Espírito Santo é o mais desconhecido. Será que não sabemos bem o que fazer com esta força?

    No oriente o Espírito Santo é sempre buscado e percebido como uma força interior, uma interioridade pessoal que se manifesta no comum; tem a sua invocação priorizada na liturgia e faz do cristianismo um cristianismo de contemplação. No ocidente  o Espírito Santo é invocado para fazer funcionar atividades,  reuniões, decisões, assembléias, sínodos, hierarquia; e torna-se  a prece  necessárias para um cristianismo de ação.  O Espírito Santo não  é  uma oposição  ao corpo e a matéria, mas sim um deixar-se animar pelo Espírito que movimenta a realidade em seu todo. Ele é a luz e o ar que a casa respira, está no espaço infinito que preenche o finito das paredes da casa; é a  casa e seu interior.

    Quando olhamos a Bíblia vemos que o Antigo Testamento coloca o Espírito como o absoluto, o sopro, o vento, a brisa, um sentido cósmico ( cfr. Am 4,13;  Sl 51,13;  Is 63,10;  Sab 1,5; 9,17) É o espírito de Deus, o Elohim. No AT o Espírito do Senhor aparece como YHWH. No NT é sempre um valor teológico e tem uma aproximação cristológica: Espírito do Filho (Gl 4,6) , Espírito de Cristo ( Fl 1,19; At 16,7;  1Pd 1,11). Mas tanto no AT como no NT é o Espírito que traz a sabedoria (Dt  34,9), a verdade (Jo 14,17), a vida (Rm 8,2), a adoção (Rm 8,15). Tem suas ações e seus efeitos. No At sopra, cai sobre, toma conta, espalha, empurra, conduz preenche, desce, vem, entra, fala, guia, vivifica, testemunha ( cfr  Nm 24,2;  Ez 11,5;  1Sm 16,14;  Is 32,15;  Gd 13,25;  Ez 8,3;  Dt 34,99;  Mt 3,16;  Jo 15,26;  At 2,4;  Ap 11,11,  Mt 10,20;  Gal 4,6 ; Jo 6,63; At 5,32). A Bíblia coloca o Espírito Santo em movimento, numa atmosfera de  espaço vital entre o humano e o mistério, impalpável e invisível, que põe sempre o humano numa dependência de seu sopro.

    Quais são os  Sete Dons do Espírito Santo?  Eles aparecem nesta forma virtuosa:
Sabedoria,  Inteligência,  Conselho,  Fortaleza, Ciência,  Piedade, Temor de Deus (ou Reverência). Vamos elencar os Sete Dons para que nos dê um caminho de virtuosidade:
SABEDORIA: Não vem de saber, mas de sabor.O sábio é aquele que sente o gosto de todas as coisas, que saboreia as experiências. Vai com sede e fome na busca intensa do quer ser e conhecer. É a arte de saborear a experiência da vida. O sábio oferece um conhecimento mais saboroso da verdade, pois a apresenta com mais afinidade, com mais tempero. A via é o paladar, no plano sutil. É ver, sentir, criar gosto com sob os olhos do Bem Amado. Como diz Mestre Eckart: “ Deus degusta-se nos meus sentidos”.
O conhecimento passa pelos sentidos e forma o Mestre.

INTELIGÊNCIA:  O caminho é o intelecto, o plano mental e intelectual. Intelectual vem do latim: “intelligere”, que quer dizer: estar na força da inteligência. Inter+legere: ler entre as coisas, ler na evidência exterior de tudo o seu interior. Legere significa colher, ajuntar, acolher.  É o conhecer, o estudar, o pesquisar. É o aprendizado e ensinamento. O discipulado. A conquista do saber que vem do pensamento lógico e racional. Usar a mente para o conhecimento e o esclarecimento. Instaurar uma consciência que leve a escolher o melhor e mergulhe numa profunda compreensão da existência. O conhecimento passa pela grande bagagem de informação e assimilação e forma o Professor.

CONSELHO: É a palavra precisa na hora oportuna. O direcionamento espiritual, moral, ético e virtuoso. Mostra o caminho. É a troca de experiências como testemunho de vida e apoio. Faz parte da prudência e ajuda a tomar decisões oportunas sem insegurança. Sugere o que fazer  nas dificuldades da vida, ensina o como falar, a quem falar e quando falar.

FORTALEZA: É não alinhar-se ao lado da fraqueza. É o ideal da força presente nas virtudes. É a força do ânimo diante das adversidades da vida. A vida não é uma luta só contra as contrariedades externas, mas é a luta diária para vencer-se. É  não fugir das dificuldades. O forte abraça a grandeza da vida. Para o filósofo Platão as virtudes baseiam nestas que considera as virtudes cardeais: fortaleza, temperança, prudência e justiça. Para o mundo Bíblico é a força de Deus com  quem  o humano pode sempre contar ( Dt 4,32-39). A força salvífica  que Israel experimenta provém da força de um Deus que ama seu povo.  Para os povos bíblicos a fortaleza vem da fé e da esperança. No NT  a fortaleza é ser como Jesus Cristo, ”sem mim nada podeis fazer”  ( Jo 15,5).Firmeza, estabilidade e fortaleza devem caracterizar um caminho de fé e de amor ((Jo 15, 4-9). São Tomás de Aquino fala da fortaleza como o  “bonum arduum” que remete à contínua superação das contrariedades;  é a obrigação de ser forte. É a superação da vulnerabilidade. O anjo não precisa ser forte, pois não é vulnerável, porém o humano tem que ser porque possui limitações. A fortaleza é superar a fragilidade. Para Paul Tillich a fortaleza é a superação das angústias existenciais na vida moral. O humano deve superar seus grandes medos: angústia diante da morte ( a ameaça de perder o ser ); a angústia da culpabilidade ( a psicose de que tudo é pecado ); e  não senso, a falta de noção ( o desafio ao ser espiritual ). A tarefa da fortaleza é sustentar o ser humano na  defesa da sua dignidade, em tudo o que pode ameaçá-lo. É  o passo necessário para a via da per+feição; o ser humano como um contínuo fazer-se ( ens contingens), é o caminho da realização.  Fortaleza é combater o mal com a mesma força de realizar o bem. Fortaleza é resistência: dizer não ao medo, não retroceder, agarrar-se ao Sumo Bem. Fortaleza é empenho em empregar todas as suas energias na construção do humano e de um  mundo melhor.

CIÊNCIA: é  o conhecer ( con+naitre = nascer junto com a experiência ); é o estar ciente do ser e dos seres. É buscar compreender. Sondar o universo e seus fenômenos ( con-siderar). Entrar na realidade de  tudo sob a luz de Deus. A verdadeira ciência vê cada criatura como reflexo da sabedoria e bondade do Criador. É dar o devido valor à todas as coisas, às pessoas, aos fatos e as realidades da vida e do mundo.

PIEDADE: Não queremos ligar esta virtude a questão devocional. O devoto que reza com piedade, mas sim a piedade como o modo de  ser sensível na arte de relacionar-se. Apiedar-se. Procurar um relacionamento reto e justo que tenha soluções para as dores do outro. Não ter dó, mas orientar o outro para a sua força. É o interesse fraterno que visa o melhor. A piedade nos capacita a enxergar e não camuflar a essência das pessoas.

TEMOR DE DEUS ( REVERÊNCIA ):  Esta virtude é totalmente diferente do medo, do pavor, da paúra, ou como quisermos chamar; também não é “respeito humano”, ou bajulação subserviente e nem uma mera admiração ou respeito de fã. A Sagrada Escritura  chama de Temor de Deus o que  é a base da  sabedoria: uma profunda reverência. Na concepção franciscana  reverência é a abertura límpida, disposição para perceber a grandeza de Deus e do Mestre. É uma humilde resposta cheia de  gratidão, docilidade, cordialidade, benquerança, doação livre, amor e respeito pela imensidão, grandeza, nobreza, humildade e bondade do Criador e todas as suas obras ( cfr.  Dn 3,57-88.56 ). É um louvor que se abre com admiração, simpatia e respeito à suave força originária. É reconhecer a nossa pequenez diante da Grandeza do Criador. É evitar a presunção e o orgulho reconhecendo a grandeza e a bondade de Deus. Esta virtude torna a  alma delicada, fiel, respeitosa ( Eclo13). É admiração, maravilhamento, encantamento, caminho de reconhecimento e conquista da verdade do ser e de todos os seres.

* Frei Vitório Mazzuco cursou Teologia e Filosofia, em Petrópolis, e fez pós-graduação em Teologia Espiritual, na Pontificia Università Antonianum, em Roma, obtendo o mestrado. Sua tesina, publicada em forma de livro, leva por título: “Francisco de Assis e o modelo de amor cortes-cavaleiresco: elementos cavaleirescos na personalidade e espiritualidade de Francisco de Assis” (Vozes 1994). Atualmente, ele é reitor do Santuário de Santo Antônio, no Largo da Carioca, na cidade do Rio de Janeiro, professor de Franciscanismo, em Piracicaba, no Rio de Janeiro e em Petrópolis. Também é pesquisador do IFAN (Instituto Franciscano de Antropologia), entidade ligada à Universidade São Francisco de Assis, em Bragança Paulista, e dedicada às áreas de Franciscanismo, Teologia e Ciências da Religião, Estudos Humanísticos, Estudos da Cultura Moderna e Pastoral.

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