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sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Virtudes franciscanas 2

Doce é sentir em meu coração
humildemente vai nascer o amor...
doce é saber, não estou sozinho
sou uma parte de uma imensa vida ... 


 Frei Vitório Mazzuco, OFM*

CUIDADO (o Saber Cuidar): É uma virtude que está sendo resgatada. Nunca se falou tanto de cuidado. A luta hoje é resgatar o cuidado. O cuidado é fundamental para que possamos elevar o nosso patamar civilizatório. A essência do humano não está na razão, na técnica, na inteligência ou na capacidade de criar condições materiais para a subsistência. A essência do humano está no cuidado. Se o ser humano não cuida da vida a vida não subsiste; a falta de cuidado leva sempre agrandes crises. Se começamos a cuidar tudo começa a dar certo. O cuidado traz as virtudes essenciais da caridade, da solidariedade, da hospitalidade, da cortesia, da generosidade, fraternidade, gentileza, reverência, respeito, sensibilidade, e a vassalidade (o ser serviçal). A estrutura básica do humano não é a razão, mas o afeto, antes da razão vem o afeto e o afeto é fundamental para o cuidado.

A nossa contemporaneidade beatificou e santificou duas heroínas do cuidado: Madre Tereza de Calcutá e Irmã Dulce da Bahia, que cuidaram da vida moribunda da rua. Governos cuidam de bancos, empresas, grupos de interesses, mas não cuidam de pessoas. Querem a obra social, mas não querem o doente, o mutilado, o fétido, o sem nada. Escolas cuidam de preparar para o mercado, mas não cuidam da solidariedade. Igrejas cuidam do status hierárquico, da precisão litúrgicas, das pompas cerimonialísticas... e a pessoa, a pessoa é prioridade para estas grandes instituições que existem com a única finalidade de cuidar do humano? Quem quer o detalhado espírito de fineza e sensibilidade? Temos que voltar a pensar, procurar e imitar as figuras exemplares da sociedade que nos testemunharam um total cuidado pela vida em todas as suas dimensões. Hoje buscamos muitas terapias para curar, erradicar, sanar, mas temos que estar cientes que a única forma de cura é cuidar; esta é a grande clínica do humano, a clínica do coração e do afeto.

Francisco de Assis viveu há 800 anos e é sempre novo.  Por quê? Porque foi o homem do enternecimento, da aproximação com o excluído, da ternura e vigor, da paz, da valorização de cada detalhe da natureza, de não perder nunca a sua humanidade e transformar em prece a sua alma: Meu Deus é meu Tudo! Fez de cada ação um projeto infinito, no simples, no modesto; no humilde fez aparecer o grande. Nós, modernos, temos muito que aprender com ele. Nós, herdeiros de uma cultura que tudo materializa e tudo vende, entregamos o espiritual para as religiões. Ele entregou o espiritual para a louvação de todas as criaturas, colocou o espiritual presente em tudo, mostrou que o universo está empapado do Espírito de Senhor e por isso não pode ser maltratado. Mostrou para nós que religião, mais do que professar é sentir, como diz uma paradigmática canção franciscana: “Doce é sentir, em meu coração, humildemente vai nascendo o Amor... doce é saber, não estou sozinho, sou uma parte de uma imensa vida...” Em tudo, Francisco de Assis redescobriu a grande fraternidade universal e o universalismo fraterno e recriou o mundo com o Criador. Ele nos inspira a cuidar da vida em seu todo, a cuidar da natureza. Isto não é apenas um gerenciamento racional e sustentável de recursos da natureza, mas é o modo de relacionar-se com a natureza, o modo de relacionar-se com a realidade total da existência: o físico, o mineral, o vegetal, o biológico, o animal, o consciente, o espiritual... onde tudo nos irmana, tudo se integra, nada se separa. A vida é uma rede de relações; nada existe fora disto. Se não cuido desta integração posso esfacelar a vida. O cuidado pela vida carrega uma promessa, um futuro. Deus mesmo nos ensinou o universo das relações cuidadosas, e o amoroso cuidado por todos os seres. Ele mesmo é uma fonte originária (Pai e Mãe), que está acima de nós com a sua fontal presença. Ele está dentro de nós (numa comunhão de amor, o Espírito Santo que preenche toda a terra com seu sopro criador e renova todas as coisas); Ele está ao nosso lado na irmandade, consanguinidade e fraternidade filial (o Filho). Cuidar é não separar fé, natureza e universo, cosmo, planeta, terra e espécie humana.

O que precisamos cuidar? Em primeiro lugar precisamos parar de trabalhar exageradamente com a nossa negatividade. Parar com este discurso de jornal televisivo de que tudo está ruim: a vida, a conjuntura, as relações, o mundo, as coisas, as pessoas, a rua, a cidade, a qualidade de vida, a política, a família e a comida. Precisamos vibrar mais com a positividade, cuidar da positividade, este lado sadio da existência. Investir mais na integridade, na inteireza do ser, respirar e transpirar mais o belo e o bom (confira a reflexão anterior), deixar a boa energia passar. Evitar esta carga pesada de excesso de preocupações, doenças, anfetaminas, ritalina, receitas e queixas. Evitar as preocupações econômico-financeiras que nos levam, cada dia, às peregrinações aos caixas eletrônicos, lugar de consulta, aplicações, reservas e poupanças. É bom e necessário que isto exista, mas vamos aprender com São Francisco, ele nos ensinou que dinheiro não é para acumular, mas sim para cuidar da vida.

Precisamos cuidar do afeto. Não reprimir o afeto, o amor, a ternura. Muito cuidado com discursos religiosos que reprimem o afeto! Religião que diz muito não é sadia. Condenar o afeto é reprimir o Amor. Precisamos ter o cuidado de não impedir o desejo de ser melhor, o desejo de plenitude, o desejo das bem aventuranças. Estar sempre ao lado da vida para vencer o medo da morte. Vencer os medos é escutar mais os desejos do coração. É preciso cuidar do sentimento. Cuidar de fazer fluir o amor que se direciona para algo, para alguém, para um grande projeto de vida. O que passa pelo coração naturalmente e necessariamente se transforma em amor. Isto nos leva prioritariamente a cuidar de alguém. Cuidar do que é humano, são e santo. Não separe o humano aquilo que Deus uniu. E o que Deus uniu? Humano e divino, espírito e matéria, efetividade e afetividade.

É preciso cuidar do emotivo e do afetivo; mergulhar na sensibilidade. Não pode faltar o Bem Amado, a Bem Amada como razão da existência. “Só o Bem Amado dá sentido à vida. É melhor viver no inferno com Ele, do que no céu sem Ele. Ele é o Bem, todo o Bem, o Bem Universal, a plenitude do Bem. Ele á força propulsora, a atração enamorante, o êxtase transfigurante e mortal. Ele é a vida e a morte, a dor que vale a pena ser abraçada, o caminho que tem que ser seguido. Ele é a palavra que sustenta a fé, o móvel que nos descentra, a voz que nos chama. Por causa d’Ele, a lepra é doçura e o deserto um desafio que esconde uma terra prometida. Ele é tudo! Como diz Ângelus Silesius: “Ele é verdade e palavra, luz e vida, alimento e bebida, caminho e peregrino, porta e repouso, bastão, luz, brinquedo, pai, irmão e filho, mãe e namorada, esposa e filha. Ele é genuflexório onde nos ajoelhamos para adorá-lo. Ele é a familiaridade que buscamos e a identidade mais profunda que temos e somos. Ele só é atingido quando não somos mais nós que vivemos, mas quando Ele vive em nós. O nosso eu é Ele e Ele toma o lugar do nosso Eu, marcando-nos com as chagas de seu intenso Amor”.

É preciso cuidar de escutar sempre a voz interior! Há uma convocação para existir! Ser atravessado por esta grande convocação, ser atravessado por uma presença. Ser atravessado por esta presença que me diz que eu tenho que fazer na vida algo de muito grande, que ninguém pode fazer por mim. O modo de amar de cada um não é igual ao do outro. A água molha todas as flores, mas cada uma nasce com a cor e o viço próprio. Esta convocação para amar já é um caminho espiritual. “Francisco, vai! Reconstrói a minha casa!” É a escuta da voz interior. É a revelação de um fazer a partir da mais profunda identidade. Quem vê o rio tem que perceber a presença da fonte... e quem me vê, quem vê o meu ser...vê o quê?

É preciso cuidar da qualidade das relações. Na qualidade da relação existe uma revelação. Cuidar da atenção, ser muito presente, ser muito perceptível, muito atento. Nutrir-se do aqui e do agora, ser sempre um ser de encontro. Cuidar da utopia humana, cuidar do humano pleno. Refazer a experiência de Jesus, Francisco, Clara. Eles são seres que dão testemunho de uma plenitude e nos ensinam que nós podemos aprender e evoluir. Eles nos ajudam a nos identificarmos com o melhor e a ser tudo o que pudermos ser para atingir o melhor... e não descansar. A verdadeira transformação só é possível quando você se torna quem você é! Isto é relevante para a vida humana. Cuidar nos ensina a ver para além de nós mesmos, nos ensina a ver a vida em suas relações espirituais, afetivas, sociais, políticas e profissionais. É uma ação de envolvimento de pessoas, uma reciprocidade ativa. É comunhão, inspiração para relações fraternas... enfim, cuidar é elevar a qualidade de vida. Cuidar é transformar! É fazer surgir um novo ser humano (cf. BOFF, Leonardo. Saber Cuidar. Petrópolis: Vozes, 1999; LELOUP, Jean-Yves. Uma arte de cuidar. Petrópolis: Vozes, 2007).

DISCIPULADO: A tarefa do discípulo é estar aos pés do Mestre. O discípulo é aquele que está sempre num contínuo aprendizado; é tarefa para toda vida, é o eterno aprendiz. Aprender vem da raiz latina discere e daí derivam as palavras discípulo, discipulado, disciplina. Estar aos pés do Mestre e escutar seu ensinamento, escutar a sua palavra e ampliar. Afeiçoado ao Mestre experimenta o seguimento e a imitação. O discipulado traz as virtudes do respeito e da reverência. Diante do Mestre reconhece a sua originalidade, a sua autenticidade a sua coerência e se sente cativado por ela. Dá um sim de absoluta confiança. Não arrisca a vida por qualquer coisa, mas pelo direcionamento positivo do Mestre. O discipulado é a virtude que traz constância, firmeza, perseverança na busca, tenacidade. O discipulado reencanta a obediência como precisão da vontade. Obedecer é descobrir um grande valor, é compreender a própria vida à luz de uma grande convocação, é interpretar a lógica de amor nos detalhes da vida, é discernimento, é agir criativo.

O discípulo não mede esforços para estar junto ao Mestre e aprender. Diz Hermógenes Harada: “O discípulo busca ter grande desejo e se engaja na obra discipular. O discípulo, quando quer, uma vez decidido, imediatamente, simplesmente faz. Querer é fazer. Ele não diz querer é poder; diz antes, humildemente: querer é fazer. Mas pode fazer tudo o que quer? Sim, mas da seguinte maneira: realiza a obra, muitas vezes pequenina, o que pode, o que sabe e em grande desejo o que não pode. [...] O grande desejo significa aquela abertura na reverência e positividade absoluta à tarefa proposta. É uma postura na qual jamais está em jogo ou em dúvida a decisão de gostar, admirar, querer, de se empenhar para conseguir. Esse grande desejo garante de antemão a continuidade do trabalho, a ausência do desânimo, a eliminação, a imunização contra a toxina do ressentimento e frustração por não progredir ou não poder gozar de imediato o fruto desejado. A dinâmica do grande desejo, o discípulo cultiva sempre de novo, olhando com grande desejo o fim, se afeiçoando cada vez mais a ele, e então, a partir desse esquentamento, faz a obra do que pode fazer. Concentra toda a energia acumulada no grande desejo para descarregar a energia infinita na pequena obra bem finita e determinada da hora presente, como se estivesse realizando a maior obra. Busca pois o infinito no finito e encontra o finito como infinito.”

Diante da convocação do Crucifixo de São Damião, Francisco de Assis responde: “De boa vontade o farei, Senhor!” (LTC 5,13). No discipulado é essencial apresentar-se com boa vontade. Aqui a vontade é enraizada na vontade do Mestre, é a vontade obediente, aberta, disposta, vigorosa, animada. É deixar fluir na própria vontade a vontade de Deus. A boa vontade traz o cultivo das virtudes da humildade, docilidade, fortaleza, paciência, tenacidade, resistência. Esta boa vontade gera uma forte espiritualidade como aquela espiritualidade que nos deram Domingos, Inácio, Teresa, Francisco, os mestres do seguimento.

GENEROSIDADE: É a ação baseada em valores já trabalhados a partir do nascido, isto é, da boa educação recebida desde o berço e que continua gerando muita disponibilidade. É estar sempre disposto, bem preparado para fazer o que deve ser feito com qualidade. Este preparo vem da terra da própria formação pessoal, familiar e fraterna. Com naturalidade e iniciativa faz com espontaneidade e segurança.

DIÁLOGO: Através da palavra, da comunicação, através da fala e de uma grande capacidade de escuta, entra no mundo das ideias num intercâmbio de compreensão. O diálogo recupera uma fala e uma escuta terapêutica: faz bem e permite atravessar os medos e incertezas. Dialogar é também saber silenciar. O falar e o pensar têm muito a ver com o silenciar.

PERSEVERANÇA: É a tenacidade dos que não desistem nunca. É manter o ritmo da persistência na busca apaixonada em atingir uma meta. É não entregar-se jamais! Esta virtude tem a ver com o heroísmo, que é feito da busca incessante, da pertinácia incansável daqueles que não param à beira do caminho. É permanecer no sonho. Como diz Walter Hugo de Almeida: “Somente os que acreditam na verdade dos sonhos é que chegam à vitória”.

SENSIBILIDADE: É o sprit de finesse, isto é, o espírito de plena atenção, fineza e cuidado. Colocar todos os sentidos para perceber a vida e os detalhes da vida. Não deixar nada passar despercebido. Afinar o espírito para ver, sentir, exercitar a atenção constante. O franciscanismo (cf. O Belo e o Bom) nos ajuda a criar uma estética de muita sensibilidade, isto é, de ter gestos de leveza, delicadeza, sutileza nas atitudes e relações. Uma grande sensibilidade para com as pessoas, para com a vida e para com todos os seres.
  •  Frei Vitório Mazzuco cursou Teologia e Filosofia, em Petrópolis, e fez pós-graduação em Teologia Espiritual, na Pontificia Università Antonianum, em Roma, obtendo o mestrado. Sua tesina, publicada em forma de livro, leva por título: “Francisco de Assis e o modelo de amor cortes-cavaleiresco: elementos cavaleirescos na personalidade e espiritualidade de Francisco de Assis” (Vozes 1994). Atualmente, ele é reitor do Santuário de Santo Antônio, no Largo da Carioca, na cidade do Rio de Janeiro, professor de Franciscanismo, em Piracicaba, no Rio de Janeiro e em Petrópolis. Também é pesquisador do IFAN (Instituto Franciscano de Antropologia), entidade ligada à Universidade São Francisco de Assis, em Bragança Paulista, e dedicada às áreas de Franciscanismo, Teologia e Ciências da Religião, Estudos Humanísticos, Estudos da Cultura Moderna e Pastoral.
  •  Extraído de http://www.franciscanos.org.br/itf/cursos/extensao/curso1_2011/8.php acesso em 11 nov. 2011.

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