Arquivo do blog

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

A morte como paradigma de reestruturação da vida

Frei Sílvio de Almeida, OFMcap
E-mail: fsilap@yahoo.com.br

A morte tornou-se para a modernidade a mais trágica e inevitável experiência da pessoa humana. Todos morrem, porém poucos se dão conta desse fato. A grande vilã da modernidade é a morte. A cultura moderna, ainda que seja uma cultura realmente de morte, tem com a morte uma relação sempre de impropriedade, ou seja, a relação com a morte é uma relação sempre de fuga, portanto, “imprópria”. Tenta-se impedir o inevitável, o encontro com o próprio fim, quando não, tenta-se pelo menos, adia-lo ou ignorá-lo, mesmo sabendo que tal experiência é certa.

A própria ciência se encarrega de alimentar as ilusões do homem moderno, criando técnicas e pesquisando meios para prolongar a vida. Tudo isso reflete um dúplice aspecto da antropologia: um negativo e um positivo. O aspecto negativo está no fato de que o homem encara a morte como um fim último, para além do qual nada existe, a morte como última palavra; o positivo na medida em que reflete o desejo de imortalidade do homem, o qual reflete sua origem e seu fim último, sua constituição ontológica de ser criado para a eternidade.

Os dois referidos aspectos parecem se contradizer, mas não, pois o primeiro se trata de como o homem se concebe historicamente, portanto, como se auto-compreende, enquanto que o segundo trata-se de sua constituição ontológica. O que não há correspondência é o que o homem é e o que ele pensa de si. Ser e pensar, nesse caso, não corresponde, pois o homem da cultura moderna, a qual nega a metafísica, pensa só o historicamente determinado enquanto que sua condição criatural ontológica, perpassa a história e a transcende, ou seja, considera um antes e um depois.

O fato é que o homem moderno tem uma relação imprópria com a morte, uma relação de fuga: aquele que diz aceitar a morte foge tentando não pensar nessa experiência. A aceitação é aqui uma forma de escamotear essa realidade; para aquele que rejeita, foge, ou tentando evitar o inevitável ou antecipando o encontro. Nas duas formas o homem não faz uma experiência da morte. Existe ate mesmo uma justificativa filosófico-grega de que não se deve temer a morte porque nunca nos encontramos com ela, uma vez que enquanto nós existirmos ela não existe e quando ela existir já não existiremos mais. Esse é o típico argumento dessa relação de impropriedade que o homem moderno tem com a morte.

O filósofo alemão Martin Heidegger afirma que o homem é um ser para a morte. Heidegger não pensa a morte como um fim diante da qual o homem se encontra e para a qual ele caminha, mas como uma experiência da cotidianidade, a ponto de dizer que quando se nasce, já se nasce pronto para morrer. A morte é um constitutivo da experiência da vida e não uma experiência que marca um fim histórico de forma brusca, mas um acontecer na própria experiência existencial, diante da qual o homem faz de tudo para não lembrar, por isso tem com ela sempre uma relação de impropriedade.

Foge-se da morte. Tem-se pavor da morte. Os cemitérios são lugares de degradação de cadáveres, o corpo sem o espírito perde todo o seu valor – ou melhor já não é valorado nem mesmo com vida – a cremação para muitos é o melhor meio de se acabar com qualquer relação com o passado e esquecer que essa experiência acontece.

Para a biologia, a morte não é uma experiência final para a qual o homem se encaminha, mas o resultado de um processo que se inicia já no nascimento, por isso alguns argumentam de que nascemos para a morte. Nesse caso ocorre, ainda, uma dupla atitude, ambas impróprias: ou se tenta retardar o fim desse processo, ou se aceita por impotencialidade, pois nada podemos fazer. É ainda uma atitude imprópria porque é ainda uma relação de fuga ou uma tentativa de esquecimento.

Em muitos velórios, o choro, quando não é remorso, é medo e, só a poucos, é saudade de quem morreu. Compreende-se a morte sempre como uma experiência trágica, como uma total ruptura com toda a história. A morte impõe medo por marcar a finitude histórica e pela incerteza do pós-morte. Embora ninguém tenha feito a experiência final da morte, pois é sempre o outro que morre, a experiência do outro afeta e desestabiliza a minha experiência de vida. Por isso, se procura o cômodo: fugir para não ter que experimentar por antecipação uma experiência inevitável.

Pensar a morte como uma total e radical ruptura com o histórico, é pensar a história somente em termos negativos, a morte seria então uma libertação, mas continua sendo uma experiência negativa, o espiritismo, por exemplo, não é somente uma negação da ressurreição, mas também uma tentativa de se perpetuar na história. Em tudo, a morte é encarada como fim último, uma experiência negativa por romper com a história, dado ao fato que o homem compreende a existência somente com um intervalo de tempo que inicia no nascer e termina no morrer. Nesse período se tenta enganar a morte, enganando a si próprio.

Mas o que é o próprio? O que caracteriza uma relação própria com a morte? Para Martin Heidegger uma autêntica relação com a morte é caracterizada pela angústia, que não é falta de sentido, de referência, mas um modo de existir enquanto ser para a morte. O que Heidegger nomina de angústia no horizonte do existencialismo, no horizonte teológico podemos chamar de tensão escatológica entre o já e o ainda não. Trata-se de uma verdadeira tensão entre aquilo que nos é dado a ser na história e a seu rumar à plenitude do Eschaton. Tal tensão não é negativa, ao contrário, é um impulsionar a um retorno à nossa origem, da qual, segundo Mircea Eliade, temos saudade.

A morte não é o fim, mas a única possibilidade de retorno à nossa origem. É o fim da história enquanto resultado da queda de Adão e Eva. Por isso, São Paulo diz que a morte é o salário do pecado. Todavia, o histórico não desaparece com a morte, pois ressuscitaremos no corpo, mas um corpo glorificado. Isso prova que o Corpo não é em si uma realidade puramente histórica, apenas o Corpo corrompido. Se o nascer na carne humana é um nascer em uma realidade marcada pelo pecado – e não nascemos para o pecado, mas somos chamados à santidade.

A morte é um renascer para a vida eterna, um renascer que tem seu início no batismo. Desse modo, a tensão constitutiva de nossa condição ontológico-criatural constitui uma verdadeira possibilidade para uma vida cristã autêntica.

A morte não deve ser um limite, mas o horizonte a partir do qual se instaura uma vida verdadeiramente ascética. A partir de então, a vida cristã se torna um itinerário de santidade, composto por fortes e verdadeiras experiências de oração, jejum e caridade. Pensar na morte como possibilidade única de retorno à origem e não como um experiência limite para a qual caminhamos, mas como evento escatológico, é pensar no presente e toda a história como a possibilidade de construir um caminho ascético no que a morte é apenas o último estágio, o ápice do nosso batismo quando nos uniremos plenamente a Igreja celeste. No Batismo das águas somos, pelo Espírito, incorporados ao Corpo de Cristo que é a Igreja; pelo Batismo do sangue (morte) seremos mais plenamente incorporados a este Corpo. O mais plenamente, porque já não será só a Igreja peregrina, mas a Igreja toda: peregrina e celeste. O ainda não cessa e já participaremos de uma realidade que na história humana participamos em princípio.

Devemos entender que a morte não é um limite, frente ao qual devemos agir corretamente ou eticamente, pensando no fim. Se assim for, continuaremos fazendo uma experiência imprópria da morte, pois ela continua sendo um objeto fora do sujeito, um limite último para o qual caminhamos. Nossa meta não é a morte, mas a vida. Olhar e pensar na nossa morte e a partir de então construirmos um caminho ascético de santidade, não significa compreender a morte como a besta que gera terror, mas como experiência que nos lança na eternidade. Olhar para a morte a partir dessa compreensão é se auto-compreender enquanto ser contigente, mortal, marcado pelo pecado e chamados à santidade.

Sejam os padres da Patrística, sejam os grandes mestres da espiritualidade, viram na morte a possibilidade de encontro com o senhor; encontro que é o cume de uma experiência ou de um caminho ascético iniciado no nosso batismo. Pensar na morte nos remete ao mistério da revelação. Deus se fez homem, padeceu a morte e ao descer aos ínferos e ressuscitando, assegurou-nos o mesmo destino: o retorno ao Pai. Por isso, numa religião – que é sempre uma tentativa de conduzir o filho ao Pai – que foge da morte ou a tem como experiência negativa, deixa de ser uma autêntica religião.

Muitos santos franciscanos carregavam consigo em suas celas uma caveira, não por um sentimento mórbido, mas por entender que a morte é uma experiência inevitável ao indicar nossa condição criatural, lança-nos na nossa condição de seres eternos criados à imagem e semelhança. Francisco, no cântico às criaturas, chama a morte de irmã e afirma ser ela a porta para a vida eterna. Morrer nessa esperança, é morrer tendo já garantido o retorno ao Pai de onde saímos pelo sopro da vida, que saiu de dentro de si.

Ora, se o próprio indica já um caminho ascético. Aqui vale lembrar o que ocorreu com o professor de espiritualidade oriental Tomás Spindlík que ao visitar um mosteiro na Romênia pediu um conselho pessoal a um monge, este respondeu: nunca esqueça de pensar na sua morte. No autêntico, pensar na morte é construir a vida; no impróprio, a fuga reflete um vazio que aplaca o homem moderno.

Lembrar a morte é uma necessidade.
Extraído de http://www.promapa.org.br/2006/index.php?pag=artigos&exibartigo=52 acesso em 24 out. 21008.

Fotogrtafia de boskizzi.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Firefox