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quinta-feira, 27 de maio de 2010

Francisco e a falsa fogueira

O que realmente aconteceu no encontro entre Francisco de Assis e o sultão Malik-al-Kamil, no Egito? Que significado tem o suposto desafio proposto pelo santo de Assis de se jogar entre as chamas de uma fogueira pela conversão dos muçulmanos?

A análise é de Chiara Frugoni, professora de história medieval da Universidade de Pisa e de Roma II, em artigo para o jornal Corriere della Sera, 21-05-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o artigo.

Francisco queria uma aplicação radical do Evangelho e por isso pregou a paz e o amor pelo próximo, por todos, também por quem era de uma outra religião, como os muçulmanos. Durante a Quinta Cruzada, Francisco passou vários meses no Egito. Quando voltou à Itália, dedicou um capítulo da regra de 1221 – algo incrível para aqueles tempos de guerras contínuas – a como os seus frades deveriam viver entre os muçulmanos: sem divergências e sem disputas, em paz.

Bem diferentemente, ao contrário, foi representado o encontro do sultão em uma das cenas da Basílica Superior de Assis. O santo lançou um desafio e está pronto para entrar na fogueira: é um detalhe aqui representado pela primeira vez, que confirma como já em curso aquela que foi uma mera proposta verbal de Francisco, assim relatada por Boaventura na "Legenda Maior".

Segundo o biógrafo, os guardas muçulmanos haviam tratado Francisco muito mal, que, porém, ao chegar diante do sultão Malik-al-Kamil recebeu uma acolhida muito favorável. Malik-al-Kamil escutava de bom grado e admirava o santo e havia lhe oferecido dons diversas vezes. Ele pedia que ele permanecesse junto dele. Diante de tantas confirmações de estima, um dia, Francisco, "iluminado por um oráculo do céu, lhe disse: 'Se vós, com o vosso povo, vos converterdes a Cristo, eu ficarei de muito bom grado convosco. Se, ao contrário, hesitardes e abandonardes a fé de Maomé pela fé de Cristo, dai ordem de acender uma fogueira o maior possível: eu, com os vossos sacerdotes, entrarei no fogo, e assim, pelo menos, podereis conhecer qual fé, aos olhos da razão, deve ser considerada a mais certa e mais santa'".

Mas o sultão respondeu que considerava impossível que os desafiados acolhessem uma proposta semelhante. O santo se ofereceu, então, para entrar sozinho: se não fosse queimado e saísse ileso das chamas, o sultão e o seu povo deveriam se converter à fé de Cristo. Desta vez também, Malik-al-Kamil respondeu que não podia aceitar, porque temia uma revolta de todos os súditos. Não cessou, porém, de experimentar uma enorme devoção pelo santo, suplicando-lhe que aceitasse inumeráveis dons, sempre firmemente recusados. Depois, Francisco, pré-advertido por uma voz divina, vendo que não podia realizar o martírio e que não fazia progressos na conversão daquela gente, retornou aos países cristãos. Esse é o relato de Boaventura na "Legenda Maior", destinado a se tornar o ponto de referência para as versões pictóricas posteriores.

Boaventura não quis contar o que nós sabemos por meio de um outro frei, Jordano de Giano, isto é, que Francisco havia sido obrigado a interromper a sua missão e a retornar precipitadamente à Itália porque a jovem fraternidade estava por se desagregar ao meio por causa de tensões de todos os tipos. Esses particulares, de fato, jogariam uma sombra sobre a santidade de Francisco e sobre a própria ordem, dado que uma viagem como essa, por parte de um chefe que deixava os companheiros sem guia, podia ser julgada como irresponsável.

O biógrafo, por isso, tendo calado sobre as razões do retorno do santo, mascarou o que parecia ser um fracasso, a falha conversão dos muçulmanos, introduzindo o desafio lançado por Francisco, embora a ordália como prova judiciária [prova física para determinar a culpa ou a inocência de alguém] havia sido proibida desde 1215 no Concílio Lateranense IV.

No afresco, às chamas crepitantes que nunca foram acesas, se une a humilhação dos pávidos "sacerdotes" islâmicos em fuga, com uma escrita que confirma tanto a real existência da grande fogueira quanto a interpretação do encontro como uma disputa, um desafio vencido obviamente por Francisco com o escárnio e a derrota dos muçulmanos.

O encontro com os muçulmanos, no afresco de Assis, falseia duplamente a realidade: aquelas chamas crepitantes que nós vemos nunca foram acesas. Francisco não queria derrotar e humilhar, como a Igreja fazia naquele tempo com os hereges ou com aqueles que professam uma fé diferente, mas sim converter e persuadir com a força de uma conduta exemplar, com o exemplo, e em paz.

Extraído de http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=32764 acesso em 25 maio 2010.

Ilustração: Saint Francis of Assisi with Al-Kamil. Séc. XV. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:SaintFrancisAssisiWithAlKamil15thCentury.JPG acesso em 25 maio 2010.


Um comentário:

  1. Admiro muito o trabalho da estudiosa Chiara Frugoni, porém o genero literario hagiografico deve ser lido como tal e não como fonte histórica. Bonaventura não está preocupado em contar a História de São Francisco, mas em através da figura do Fundador da Ordem dos Frades Menores, fornecer uma figura fundamentada teologicamente, que desse sustento a Ordem dos Menores no periodo historico dificil que a Ordem enfrenta sendo perseguida, e ao mesmo tempo mostrar a sua utilidade e legitimidade para a Igreja. E na Legenda de Boaventura que Francisco vai ser definido como o Alter Christus, por ex.

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