Arquivo do blog

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

São Francisco de Assis e o Cântico das Criaturas

Pedro Garcez Ghirardi
(Livre-Docente FFLCHUSP)
Laudato sie, mi Signore, cum tucte le tue criature
(São Francisco de Assis)

As reflexões aqui apresentadas destinam-se a uma palestra com jovens universitários. e nada mais pretendem que ser um convite à leitura do Cantico delle Creature (Cântico das Criaturas). Texto literário que, expressando a experiência espiritual de São Francisco de Assis, é o primeiro grande exemplo da poesia italiana.

[ . . . ]

Ainda nesses últimos anos é que Francisco, mais uma vez, se volta para a poesia. Mais uma vez, porque ele desde jovem gostava de recitar e cantar os poemas dos rimadores provençais, cuja língua bem conhecia. E sua grande fonte de inspiração, durante a vida toda, foram as poesias da Escritura Sagrada, sobretudo os salmos e o Cântico dos Cânticos. Seu amor à poesia é que o tornou conhecido como jogral de Deus, giullare di Dio.

Não é de estranhar, portanto, que no momento em que se preparava para partir, Francisco voltasse a buscar na poesia a expressão de toda a sua experiência espiritual. Nascem, assim, os versos do Cântico das Criaturas. Vale a pena reproduzi--los:

Altissimo, onnipotente, bon Signore,

tue so' le laude, la gloria e l' honore et onne benedictione.

Ad te solo , Altissimo, se confano

e nullu homo ène dignu te mentovare.

Laudato sie, mi' Signore, cum tucte le tue criature,

spetialmente messer lo frate sole,

lo qual' è iorno, et allumini noi per lui

Et ellu è bellu e radiante cum grande splendore:

de te, Altissimo, porta significatione.

Laudato si', mi' Signore, per sora luna e le stelle:

in celu l' ài formate clarite e pretiose e belle.

Laudato si', mi' Signore, per frate vento

e per aere nubilo e sereno et onne tempo,

per lo quale a le tue creature dài sostentamento.

Laudato si', mi' Signore, per sor' acqua,

la quale è molto utile et humile et pretiosa et casta.

Laudato si', mi' Signore, per frate focu,

per lo quale ennallumini la nocte:

et ello è bello et iocondo e robustoso e forte.

Laudato si', mi' Signore, per sora nostra madre terra,

la quale ne sustenta et governa,

e produce diversi frutti con coloriti fiori et herba.

Laudato si', mi' Signore, per quelli ke perdonano per lo tuo amore

e sostengono infirmitate e tribulatione.

Beati quelli ke'l sosterranno in pace

ca da te, Altissimo, sirano incoronati.

Laudato si', mi' Signore, per sora nostra morte corporale

da la quale nullu homo vivente po' scappare:

guai a quelli ke morrano ne le peccata mortali;

beati quelli ke trovarà ne le tue sanctissime voluntati,

ca la morte secunda no 'l farà male.

Laudate et benedicete mi' Signore et rengratiate

e serviateli cum grande humilitate.

Estes versos de Francisco são a primeira grande expressão poética de uma língua ainda sem nome, pois estava nascendo. Era conhecida como língua vulgar, isto é, língua do povo, em contraposição ao latim dos eruditos e dos teólogos. Francisco eleva seu Cântico na mesma língua em que falava e rezava o povo simples de Assis e de Greccio, na mesma língua quotidiana da comunidade de irmãs que o hospedava. Sim, pois o Cântico de Francisco foi composto numa cabana próxima do conventinho de São Damião, onde moravam Clara de Assis e as primeiras seguidoras do ideal franciscano. É na língua dos pobres e das mulheres que nasce a poesia franciscana. Estavam abertos os caminhos daquela que, um século mais tarde, seria a língua de Dante. E na Divina Comédia a figura de Francisco haveria de inspirar um dos cantos mais belos do Paraíso.

[ . . . ]

Altissimo, onnipotente: com estas palavras, que manifestam toda a grandeza da divindade, abre-se o Cântico do poeta. O Senhor é altíssimo e onipotente, epítetos que enchem de temor reverencial perante o "solus Sanctus" da liturgia cristã e que parecem antecipar o "temor e tremor", de que fala Kierkegaard. Mas o poeta logo acrescenta que o Senhor é bon. É sobretudo a bondade do Criador que se vai manifestar ao longo da poesia de Francisco, pois é sobretudo a bondade o que fala ao coração dos pobres e dos pequenos. Para descrever a grandeza divina o poeta emprega adjetivos longos, solenes, tirados do latim litúrgico e da linguagem teológica erudita: altissimo, onnipotente. Mas para descrever a divina benevolência, o poeta usa um adjetivo breve, coloquial, familiar, o mesmo que se usa para falar do pão saboroso ou do tempo sereno: bon. É este o adjetivo que Francisco põe mais perto do nome do Senhor.

[ . . . ]

Laudato sie, mi Signore, cum tucte le tue criature: este verso, que dá início à série de louvores do Cântico, é talvez a expressão mais acabada da espiritualidade de Francisco. Para louvar o Senhor, o poeta evoca todas as suas criaturas. Todas, sem exclusão. Todas devem entrar no louvor divino. São essas criaturas que nos revelam a face do bon Signor, pois toda criação é boa: "E Deus viu que tudo era bom", dizem as Escrituras (Gên. I, 31). Longe das tendências pessimistas de algumas correntes ascéticas, Francisco não foge da criação para buscar a divindade. Pelo contrário: faz da criação o caminho para o canto jubiloso do encontro com o divino. E o texto original tem uma força particular. Isto porque em italiano antigo, como ainda no italiano de hoje, criature é palavra que tem significado filial. Significa não só criaturas, em geral, mas significa também filhos, crianças. Ao falar em criaturas, o poeta eleva um canto à divindade como fonte de vida. Por isso o louvor deste Cântico das criaturas é um louvor filial de toda a natureza a quem, sendo imensamente poderoso e sublime, é principalmente bondade que cria a vida: altissimo, onnipotente, bon Signor.

[ . . . ]

Mas ao abraçar a fraterna pobreza de quem reconhece que nada possui, que tudo é do Senhor, Francisco descobre um tesouro que o deixa inesperadamente rico, pois o bon Signor é também "meu Senhor", mi' Signore. "Solo Dios basta", exclamará mais tarde em uma de suas poesias a grande Santa Teresa. "Meu Deus e meu tudo" repetia Francisco, poeta e santo. Deus meus et omnia é ainda hoje o lema da família franciscana.

[ . . . ]

Laudato sie, mi Signore, cum tucte le tue criature: todas as criaturas, sem exclusão daquelas que nos trazem infirmitate e tribulatione, sem mesmo excluir sora nostra morte corporale. As criaturas que levam o ser humano à mais radical das pobrezas: à perda dos bens mais preciosos, a saúde, a própria vida. O cântico de louvor se ergue mesmo quando o a pobreza é extrema, quando o despojamento é radical. Os estigmas não poderiam estar ausentes da poesia de Francisco. "Quem ama sua vida perdê-la-á..." "Felizes os que choram...": é assumindo em cheio a loucura das bem-aventuranças evangélicas que o poeta nos surpreende. Desta loucura é que nasce o louvor deste Cântico. Dela nascerá também a poesia sublime de outro grande místico franciscano, o bem-aventurado Jacopone, poeta admirável, que ficou conhecido como o "louco de Deus".

[ . . . ]

Mas se a experiência mística de Francisco o leva a louvar mi Signore, cum tucte le tue criature, é preciso lembrar algo que deve aqui receber especial atenção: este é um canto de louvor, é louvor que se manifesta em poesia. Francisco não é somente místico, é também poeta. Na beleza da palavra poética encontra um caminho para o bon Signor. Sim, porque, para Francisco de Assis, a beleza das criaturas é grande manifestação da beleza divina.

[ . . . ]

E da beleza o poeta continua a falar na estrofe seguinte: Laudato sie, mi Signore, per sora luna e le stelle, / in celu l' ài formate clarite e pretiose e belle. Se no sol o poeta vê a beleza como serviço indispensável à sobrevivência de todos: allumini noi per lui, na lua e nas estrelas surge a beleza aparentemente sem proveito, a beleza que não serve senão de fonte de prazer, a beleza gratuita: in celu l'ài formate clarite pretiose e belle. Esta é beleza da arte, a beleza da poesia, que aparentemente não servem para nada, mas que expressam, como neste Cântico, o sentido mais alto da existência humana.

[ . . . ]

A contemplação da beleza das criaturas, dos irmãos e irmãs, como manifestação do Criador é o que leva Francisco a expressar em poesia sua grande experiência mística. A expressão poética torna-se inseparável dessa experiência. E o poeta Francisco não hesita em buscar a beleza de suas estrofes e de seus versos, como artista cuidadoso. Uma análise minuciosa desses versos seria fascinante, mas iria além dos limites destas reflexões. Basta lembrar que já se falou, por exemplo, na personificação do sol, da lua e das estrelas, e assim também da água, do fogo, do vento, da terra, da criação toda, que se humaniza no universo poético de Francisco. Convém talvez acrescentar que o poeta-jogral, poeta-músico que canta nestes versos, cuida com esmero da sonoridade dos versos. Vejam-se as rimas: Signore/honore (rima interna), stelle/belle, vento/sostentamento, rengratiate/humilitate. Notem-se as inúmeras assonâncias, entre as quais: sole/splendore, acqua/casta, terra/governa /herba. Oberve-se o efeito da insistência em algumas tônicas como na descrição de frate fOcu...iocOndo, robustOso e fOrte... Nesse adjetivo iocondo, que fala de serviço e de alegria (iuvare, iucundus, diziam os latinos), transborda a "perfetta letizia" dos Fioretti franciscanos e de todo este Cântico de louvor... Observe-se o contraste das tônicas - de um lado, U, O (que em italiano arcaico freqüentemente se confundem) e, de outro, A - como expressão da modéstia serviçal e da pureza cristalina da irmã água: Utile, Umile, pretiOsa e cAsta... Nem se pode esquecer a musicalidade que deriva da anáfora constante: Laudato sii.. laudato sii... Lembrem-se também as imagens plásticas, como as que evocam a variedade das frutas, diversi frutti, ou o colorido das flores e dos prados: coloriti fiori et herba...

Mas falar da arte do poeta Francisco nos levaria longe e é preciso concluir. Vale então lembrar algumas palavras de um artista contemporâneo, que, como Francisco, foi também poeta e homem de oração. Falo de David Maria Turoldo (1916-1992). Em um de seus últimos escritos, sobre a poesia e a fé, dizia ele (vou traduzindo do italiano):

"Não há nada de mais gratuito que a poesia. A poesia não tem mais finalidade que cantar. [...] Este é o estado de graça de Francisco e dele é que brotou o famoso 'Cântico das criaturas'. [...]. Cantar somente a beleza: ousar compor continuamente seu poema, sem que ninguém tenha a ilusão de o ter conseguido. A última expressão do mundo e da linguagem é a beleza e a criação é sua epifania Não há criatura que não esconda um raio da Beleza Suprema" ("Poesia e poesia religiosa" in Arte e Fede Cristiana, número temático de Credereoggi, 36/1986, p. 27-30).

Turoldo morreu exatamente há dez anos e encerrar estas reflexões com suas palavras é trazer à lembrança alguém quem foi, como Francisco, um "jogral de Deus".

Leiam na íntegra em http://www.hottopos.com/seminario/sem2/pedro.htm

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Firefox