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terça-feira, 11 de agosto de 2009

Francisco: uma fascinante viagem aos confins do diálogo entre Islã e Ocidente

Durante a quinta cruzada, enquanto a expedição que partira da Europa assediava a cidade de Damieta, São Francisco de Assis se dirigiu ao campo do sultão Malik al-Kâmil, neto de Saladino, para encontrá-lo. O episódio está datado, com alguma aproximação, em setembro de 1219, e nenhuma testemunha direta anotou o que ocorreu entre os dois personagens. As fontes árabes até ignoram totalmente o episódio, ao contrário das europeias, que, a partir daquele momento, teceram uma intricada rede de hipóteses sobre o evento e sobre seu significado.

A reportagem é de Marina Montesano, publicada no jornal Il Manifesto, 08-08-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O historiador norte-americano – que ensina, porém, na FrançaJohn Tolan dedicou-lhe um livro, em 2006, intitulado "Il santo dal sultano. L'incontro di Francesco d'Assisi e l'islam" [O santo do sultão. O encontro de Francisco de Assis e o islã, em tradução livre] (Editora Laterza, 420 p.), que agora é possível ler na tradução italiana de Michele Sampaolo. O objetivo de Tolan não é, porém, interpretar o sentido do encontro, mas sim analisar como a historiografia e a memória dos séculos contemporâneos e sucessivos trataram esse tema, projetando visões, inquietações, problemas atuais. Não é um fenômeno rato, bem pelo contrário. Como escrevia Fernand Braudel, "a história não é outra coisa que uma contínua série de interrogações voltadas ao passado em nome dos problemas e das curiosidades – assim como das inquietações e das angústias – do presente que nos circunda e nos assedia".

No caso do encontro entre Francisco e Malik al-Kâmil, porém, não estamos diante de problemas e inquietações de modesto calibre: o encontro entre os dois personagens se torna, de fato, metáfora daquele entre Ocidente e Oriente. Não é por acaso que as últimas páginas do livro retomem a polêmica que se seguiu ao 11 de setembro entre Oriana Fallaci e Tiziano Terzani. Não se espere uma tomada de posição do autor sobre esse propósito. Não são tanto as relações entre civilizações que lhe interessam (um tema certamente bem mais presente no seu livro anterior, "Les Sarrasins", nunca publicado na Itália), mas sim o modo em que a historiografia age como em um jogo de espelhos, de um reenvio infinito.

Mas vamos brevemente aos fatos. Em torno a agosto de 1219, os cruzados que atacam Damieta estão decaídos pela falta de resultados. Perto do fim do mês, lançam um ataque poderoso, mas são repelidos e registram enormes perdas. É nesse momento de desconforto que São Francisco se encontra no campo dos cruzados e, segundo o seu biógrafo Tomás de Celano, ele prediz a sua derrota.

Durante a fase de indecisão, iniciam as negociações: al-Kâmil propõe um acordo com o qual cede Jerusalém, preventivamente privada de defesas para torná-la inutilizável do ponto de vista militar, aos cristãos, em troca do fim das hostilidades. Os europeus se dividem entre favoráveis e contrários, e no fim o segundo partido é que prevalece. Provavelmente, Francisco aproveita a trégua para se dirigir ao campo adversário. Poucos dias mais tarde, retorna ao dos assediadores. Como já dito, ignora-se totalmente o que ocorreu naquela situação, mas o episódio já entra prepotentemente nas crônicas daquele tempo.

Da parte franciscana, o missionarismo em terra de Islã se torna um caráter dominante, alternando momentos de busca do martírio a todos os custos com iniciativas mais construtivas: em cima dessas últimas, a fundação da Custódia Franciscana da Terra Santa, que ainda opera nos nossos dias.

A visita de Francisco ao sultão se transforma bem rapidamente de episódio da história da Ordem Mendicante em um elemento de debate bem mais generalizado. O gesto do santo de Assis implica em uma rejeição da cruzada em favor do diálogo? Ou o espírito de missão deve ser entendido na ótica de uma controvérsia tradicional, que não rejeita a luta armada? Os fatos de Damieta estão abertos a toda interpretação, e justamente isso fez sim com que, durante os séculos, cada um se apropriasse deles segundo propensões e interesses disparatados.

Certamente, à luz dos diversos testemunhos das fontes é possível afirmar que esse encontro ocorreu verdadeiramente e que, de algum modo, pelo menos aos olhos dos contemporâneos ocidentais, ele constituiu uma surpresa. Menos aos olhos das testemunhas árabes, mais habituadas a uma controvérsia especulativa entre expoentes de fés diferentes.

Tomado na ótica certa, "Il santo dal sultano" constitui uma viagem fascinante no modo em que o Ocidente viveu e imaginou, até tempos muitos recentes, a sua relação com o Islã.

Extraído de http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=24707 acesso em 11 ago. 2009.

Ilustração: St Francis before the Sultan / Giotto di Bondone. Basílica de Assis. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Giotto_-_Legend_of_St_Francis_-_-11-_-_St_Francis_before_the_Sultan_(Trial_by_Fire).jpg acesso em 11 ago. 2009.

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