Arquivo do blog

sábado, 27 de fevereiro de 2010

José Alberto Baldissera sobre Fratello Sole, Sorella Luna

Uma verdadeira e bela poesia

Professor no curso de História da Unisinos, José Alberto Baldissera é graduado em Filosofia e em Letras, mestre e doutor em Educação pela PUCRS. O professor é autor da obra O Livro Didático de História – uma visão crítica. 4. ed. Porto Alegre: Evangraff, 1994 e co-autor do livro História do Pensamento Humano. São Leopoldo: Unisinos, 1995, entre outros. Ele foi entrevistado pela IHU On-Line de 29 de agosto de 2005, edição nº 153, a respeito da primeira palestra do evento Idade Média e Cinema, em 3 de setembro, que concedeu em parceria com o Prof Dr José Rivair de Macedo, da UFRGS. Na edição 162, Baldissera falou sobre O nome da rosa, filme inspirado em livro de nome idêntico, de Umberto Eco, apresentado na Idade Média e Cinema, no IHU, em 2005. A contribuição mais recente de Baldissera à IHU On-Line aconteceu na edição 170, de 06-03-2006, com a entrevista O rei dos reis – em busca de um Cristo mais divinizado.

IHU On-Line - Quais são os maiores méritos de Irmão Sol, Irmã Lua do ponto de vista cinematográfico? Qual é a atualidade dessa produção?

José Alberto Baldissera – Irmão Sol, Irmã Lua, de Franco Zeffirelli tem o mérito de abordar, ou melhor, de apresentar através de um corte, ou prisma delimitado, aspectos da vida de um dos santos mais populares da Igreja Católica: São Francisco de Assis (o Poverello, o pobrezinho) como também é referenciado. O que é apresentado no filme não implica em tudo o que São Francisco pregou nem no que provocou na sociedade de seu tempo, ou em relação à própria Igreja. Detêm-se, principalmente na conversão de Francisco, na formação de seu grupo inicial, e também, quando ele vai a Roma (1210) com os seus doze primeiros discípulos obtendo do Papa Inocêncio III a aprovação verbal da primeira Regra dos Frades Menores que, conforme o historiador Jacques Le Goff está perdida. Na obra de Zeffirelli tudo é dirigido praticamente para aquilo, que o próprio Papa Inocêncio III, ao recebê-lo disse que o próprio Deus teria dado a ele, Francisco, “a graça de se aproximar Dele, através de suas amadas criaturas”.

O filme de Zeffirelli também mostra na sua parte inicial a reação da família de Francisco principalmente, com a mãe e o pai. Também, é claro, com os amigos e a Igreja.

Como cinema os méritos do filme sob o ponto de vista estético é excelente. E como é do estilo de Zeffirelli, com tomadas belíssimas, principalmente quando mostra a natureza. Isto tudo ajuda a ambientar a história contada com bom gosto propondo uma comunhão perfeita entre Francisco e a natureza, as árvores, as flores, as aves que ele tanto ama e que fazem parte da essência de sua pregação e do seu contato com Deus.

IHU On-Line - Como essa obra ajuda a mostrar a realidade social da Idade Média?

José Alberto Baldissera – Quanto a mostrar a realidade social da Idade Média nessa época no final do século XII e na primeira parte do século XIII (Francisco morre em 1226) é bastante superficial no sentido de reconstituição histórica se considerarmos toda a evolução sociopolítico-econômica e cultural dessa época. Refere ao aspecto comercial, que estava em desenvolvimento, principalmente, através da figura do pai de Francisco um rico comerciante de tecidos da cidade de Assis. Também, esboça o poder a pompa da Igreja e a corte papal e em especial do Papa Inocêncio III.

A ambientação da cidade de Assis é perfeita. Aliás a Itália se presta muito a essas ambientações medievais pela sua história e a conservação desses ambientes. As tomadas devem ter sido feitas em vários lugares, pois, não parece, a principio, que tudo tenha acontecido na atual cidade de Assis, e não há nos créditos do filme maiores informações quanto a isso. Porém, o filme que já tem pouco mais de duas horas não poderia mostrar toda a complexidade da sociedade medieval de então. Nos parece que a ambientação proposta por Zeffirelli e pelo próprio roteiro do filme é suficiente para os aspectos da vida de Francisco que foram abordados. Pois como já foi dito é um corte feito sobre a vida de São Francisco de Assis onde não chega a abordar a construção da Ordem, de sua divisão e das relações com a Igreja. Também não se discute outros aspectos da proposta franciscana. O que é mais enfatizado é a opção pelos pobres e também por uma opção de vida afastada de riquezas materiais e em contato com a natureza. Nos parece que a abordagem feita por Zeffirelli é suficiente e criativa para nos passar a importância de São Francisco de Assis e aspectos importantes de sua proposta de vida e de sociedade, trazendo de volta o “verdadeiro” Cristo, e não mais o cristianismo opulento veiculado pela Igreja da época.

IHU On-Line - No quesito religião, acredita que Zeffirelli conseguiu representar a experiência mística de Francisco de Assis?

José Alberto Baldissera – Penso que uma experiência mística, jamais será atingida por palavras, ou mesmo visualmente, como nesse caso, através do cinema. No entanto, podem-se sugerir traços marcantes de uma experiência mística, mesmo que não se a atinja na sua essência por completo. Acredito que a arte nesse caso o faz de uma maneira extraordinária e de uma forma muito mais sensível e criativa do que uma abordagem racional ou cientifica. E nesse caso o filme de Zeffirelli é tocante e há momentos de uma verdadeira e bela poesia para nos sugerir o que seja isto. Nesses momentos o filme conjuga as tomadas de cena a música e a interpretação dos personagens de uma forma onde na mensagem que nos chega transparece a comunhão com a natureza, com a simplicidade e com um grande louvor à vida e ao seu Criador.

IHU On-Line - De que modo Irmão Sol, Irmã Lua mostra o surgimento da Ordem dos Franciscanos Menores? Quais são as aproximações da ficção com a realidade?

José Alberto Baldissera – O filme não chega a discutir sobre aspectos da Ordem dos Franciscanos Menores, pois como sabemos as dissensões no interior da Ordem dos Menores já começam ainda durante a vida de São Francisco. E como afirma o historiador Jacques Le Goff os Spirituali ou Fraticelli vão se apresentar cada vez mais extremistas na austeridade e hostis a Roma, vendo-se reduzidos a posições heréticas. Enquanto que, os Conventuali aceitaram seguir a Regra interpretada e completada por bulas pontifícias que atenuaram a prática da pobreza. O que é mostrado é o pensamento original que teria sido proposto por Francisco. Portanto não é aqui uma questão de aproximação ou não da ficção com a realidade, pois não há porque discutir esse aspecto no filme, uma vez que ele se propõe a mostrar mais o lado poético e religioso de São Francisco do que discussões religiosas ou abordagens teológicas. Mesmo assim sabemos que a arte se permite criar, o que faz parte de sua própria essência, e durante o filme pode-se apontar vários momentos ou características ficcionais, e isso não desmerece em nada a proposta de Zefferelli, pois também sabemos que mesmo a História-Ciência é eivada de ficções, onde muitas vezes é bastante difícil, e até impossível separar a ficção da realidade.

IHU On-Line - E a respeito de Santa Clara, seguidora de Francisco, quais seriam as cenas mais significativas do filme?

José Alberto Baldissera – A personagem de Santa Clara aparece em momentos importantes em relação a São Francisco. A primeira cena ele a vê levando comida para os leprosos o que o deixa perplexo e ao mesmo tempo se afasta com certa repulsa. Mais tarde quando da sua “conversão” ele vai entender esse gesto, e é claro, também o pratica. A relação dos dois é proposta como uma comunhão de poesia e amor (não material) onde os dois se irmanam e se aproximam de Deus através da natureza e das criaturas.

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não-questionado?

José Alberto Baldissera – Quando o filme foi produzido (1972) ainda havia os respingos dos movimentos estudantis, de uma juventude, sedenta querendo uma sociedade diferente, menos desigual e violenta, e do movimento Hippie propondo Paz e Amor. O filme cabe perfeitamente dentro dessas propostas, e a figura de São Francisco, depois que o filme é lançado, torna-se um verdadeiro ícone pelos anos 1970 a fora. O próprio São Francisco teria dito: “Disse o Senhor para mim que queria que eu fosse um novo louco no mundo”. O seu lado “revolucionário” aparece quando resolve escolher os pobres e os simples como exemplos e modelos e quando decide pregar nas praças públicas, junto ao povo, enfrentando a sociedade de seu tempo.
Mas, Le Goff chama a atenção também a um aspecto “reacionário” de Francisco. A Europa se encontrava num desenvolvimento ascendente onde as Universidades reencontravam o conhecimento e ele condena os livros e a ciência, pois esses levariam à superioridade e daí ao poder. Condena também o dinheiro quando a Europa começa a fazer grande uso dele, levando a passagem do mundo feudal para a abertura do capitalismo. O mesmo historiador ainda afirma que Francisco equilibrou-se a um passo da heresia. Lembra, ainda, que não é certo que Francisco quisesse fundar uma Ordem. Sua preferência seria para uma “Fraternidade”, um grupo de poucos como foi o grupo que seguiu Jesus. Le Goff ainda acrescenta que “(...) a poesia que se desprende de São Francisco, a lenda que dele emanou em vida fazem de tal modo parte de sua personalidade, da sua vida, da sua ação que nele Poesia e Verdade se confundem”. E o escritor Chesterton ainda nos lembra “(...) esse grande místico não via sua religião como uma teoria, e sim como um caso de amor”.
Extraído de http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_eventos&Itemid=26&task=evento&id=45&id_edicao=223 acesso em 22 fev. 2010.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Firefox