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quarta-feira, 14 de abril de 2010

O cordão de São Francisco

(Artigo publicado na Santa Cruz. Nov/1982 e no Boletim da Comissão Mineira de Folclore. Ago/1986)

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Introdução:

Francisco de Assis nasceu provavelmente em 1182. Em 1982 foram comemorados os oito séculos do seu nascimento com lançamento de livros, um selo postal, salões de arte e celebrações religiosas. As três ordens, fundadas por ele, os franciscanos, as clarissas e a ordem terceira, manifestaram-se na ocasião.

São Francisco e seus frades estão muito presentes na história e na cultura popular.

Em Canindé(CE) está seu grande santuário que atrai anualmente muitos milhares de romeiros. Especialmente nas igrejas barrocas existem imagens bonitas do nosso santo, que é padroeiro dos escritores de cordel(desde 1975) e de todos os trovadores. A fé popular guarda histórias, rezas, benditos e até pontos de umbanda que falam de São Francisco. Umas quadras conhecidas:

São Francisco é meu pai Santo Antônio é meu irmão

Os anjos são meus parentes Ó que bela geração.

(Araçuaí.MG.1979)

Viva São Francisco Com tanta grandeza

Retrato de Cristo É pai da pobreza.

(Salinas.MG.1978)

Ó meu padre São Francisco Coluna da fortaleza

Assuspende o seu cordão Senão eu caio de fraqueza.

(Araçuaí.MG.1977)

Ele está presente nos cantos de penitência na ocasião das secas. Também há quadras sobre ele nas folias de Reis e nos benditos da Semana Santa. São Francisco tem cantos de romaria e de simples devoção. Existem rezas que pedem sua ajuda para render e abençoar a comida, para amansar doidos e afugentar o demônio. Em alguns lugares é cantado o ofício popular de São Francisco (Cfr.Cartilha da Doutrina Christã, de Antônio José de Mesquita Pimentel. Porto,1871. pág.198ss.) Esta pequena introdução não mostra toda a riqueza da devoção popular para com São Francisco, mas é parte do contexto em que aparece o CORDÃO DE SÃO FRANCISCO.

A - Seu uso no Século XIII

Já no primeiro século franciscano o cordão de São Francisco chamava muita atenção. Vejamos o que diz a seu respeito Tomás de Celano)em três textos distintos:

"Quando saíram, o bem-aventurado Domingos pediu a São Francisco que se dignasse dar-lhe a corda que trazia na cintura. São Francisco custou para fazer isso, negando-se com tanta humildade quanto era a amizade com que o outro fazia o pedido. Mas o pedido devoto acabou vencendo, e ele cingiu a corda com muito respeito embaixo de sua túnica" (II Cel. 150).

"Então o demônio lhe aprontou uma gravíssima tentação de luxúria. Mas o Santo-Pai, logo que percebeu, tirou a roupa e se açoitou duramente com uma corda, dizendo: Vamos, irmão asno, é assim que te deves comportar, é assim que tens de ser castigado" (II Cel. 116).

"Gualfredúcio (...) tinha consigo uma corda que São Francisco já tinha usado na cintura. Aconteceu que naquela cidade muitos homens e não poucas mulheres sofressem de várias doenças e febre. O homem de que falamos visitava a casa de cada um dos doentes, mergulhava a corda na água ou misturava alguns de seus fiapos dentro dela. Dava-a de beber aos pacientes e assim, no nome do Senhor, todos conseguiam a saúde" (I Cel. 64) (cf. I Cel. 120).

Descobrimos aqui: São Domingos que usa o cordão num ato, digamos, de devoção; São Francisco, ele mesmo, açoita-se com a corda contra a tentação do demônio; e Gualfredúcio cura com ele as doenças.

B - Durante a História

A devoção do cordão de São Francisco continuou através dos séculos. Surgiram até confrarias de Cordígeros. Encontramos uma notícia sobre cordígeros na Bahia: No Arquivo Histórico Ultramarino em Lisboa existe o 'Compromisso da Venerável Ordem dos Cordigérios da Penitência do Patriarca São Francisco de Assis (...) na sua igreja própria de Santa Maria dos Anjos da Portiúncula deste Arcebispado da Bahia. Roma, 1720, 2 de maio.'(Cód.1494) Não nos é possível uma leitura do compromisso da Bahia, por isso consultamos o 'Manual da Arquiconfraria do Cordão de São Francisco de Assis'(Rio, 1957), que diz: O belo gesto de São Domingos espalhou-se por toda parte (...). Muitos, impedidos de entrar na primeira ou na segunda ordem franciscana e não tendo suficiente preparo para se tornarem terceiros, fizeram por si mesmos cordões semelhantes àquele usado pelo Santo, cingindo-se ao modo dele. (...) Em sinal de aprovação eclesiástica deste piedoso costume o Papa Sixto V, franciscano conventual, reuniu todos os cordígeros existentes e todas as confrarias, que para o futuro fossem eretas, na Arquiconfraria do Cordão de São Francisco por ele assim fundada em 1581. (Const: Ex supremae dispositionis). Determinou também que a sede universal da arquiconfraria fosse ereta na Basílica Papal de São Francisco de Assis na Itália, onde jaz o corpo do Seráfico Pai São Francisco (Const. Divinae Caritatis, 1587). Também outros papas demonstraram seu apoio à arquiconfraria entre os quais o Papa Pio XI (Rite Expiatis, 1926).

Sobre o uso do cordão encontramos coisas curiosas na "Collecção de Bençãos Ecclesiasticas Approvadas pela Santa Igreja Catholica Romana"(Porto,l797). Neste livro constam uma benção do cordão recebido por devoção(pág.207) e uma benção do hábito de São Francisco para os defuntos(pág.209).

Estudando mais um pouco poderíamos encontrar ainda muitas informações sobre o cordão durante os oito séculos da história franciscana, mas neste curto trabalho passemos para o uso presente do cordão.

C - O cordão de São Francisco hoje.

Hoje a corda franciscana continua inspirando os espíritos. No salão de arte dedicado a São Francisco em setembro de 1982 no Palácio das Artes em Belo Horizonte encontramos uma participação chamada: 'Cordões de São Francisco, montagem ambiental", da artista: Helena Netto. Trata-se de uma pequena sala reservada e dedicada exclusivamente ao cordão. Nela encontravam-se alguns pedaços de cordão muito grosso para serem manipulados segundo a livre inspiração dos visitantes. Havia um álbum de retratos com sugestões para isso.

Enquanto uma jovem artista chama a nossa atenção pelo assunto, constatamos que também a busca do mesmo cordão por devotos de todas as idades continua firme. Na secretaria da Irmandade da Terra Santa em Belo Horizonte, entre janeiro até setembro de 1982, foram vendidos 2000 cordões de São Francisco devidamente bentos pelo padre comissário. Só os próprios frades quase não usam mais o cordão.

Além das pessoas que compram, há muitas que fazem o cordão em casa. Vão tecendo o cordão com as próprias mãos, individualmente ou em grupos, mas sempre fazendo oração. No Nordeste, em Pernambuco, registrei um canto para tecer o cordão:

Zabézinha tecedeira, vem, vem, Vem tecer este cordão.(2x)

Numa ponta tem São Pedro, vem, vem, Na outra Senhor São João, vem, vem,

No meio faz um cruzeiro, vem, vem, Do divino São João.

(Dona Eulina Silva - Recife 1972)

D - Significado do Cordão e dos Nós

Para explicar como faz o cordão, o senhor José Lobo Sobrinho da cidade de Jacinto MG (1978), diz:

"Quando alguém morre aqui em Jacinto, eu faço o cordão. Quem me ajuda e a mulher e o filho. O cordão é feito de linha de algodão. Precisa de uma quarta de linha. Eu faço o cordão e, na hora de dar os três nós, eu rezo. Cada nó tem um Pai- Nosso e uma Ave-Maria. Rezo no coração pensando na pessoa, e na hora falo o nome dela". A dona Zefa, artesã, explica: Essas orações dão reforço. É por isso que se chama: Cordão preparado.(Araçuaí MG.1979)

Dona Filó, cozinheira dos freis em Araçuaí em (1977), conta:

"O cordão de São Francisco é de grande utilidade. Serve para rebater o demônio e guiar a gente no caminho certo. Quem tem o cordão de São Francisco não perde a direção da estrada de Jesus. E quem anda com Deus e Nossa Senhora, São Francisco está guiando. Cada nó do cordão tem o Creio-em-Deus-Padre, o Senhor-meu-Jesus-Cristo, Eu-pecador, Pai-nosso, Ave-Maria e Santa-Maria. Se o demônio chegar perto, ele dá uma rabanada com aquele cordão e o demônio afasta. Aquelas palavras, que tem no cordão, faz ele ficar bento. Não é todo mundo que pode fazer o cordão. Só quem sabe fazer as orações e tiver confiança em Deus, pode fazer. Vai rezando e dando os nós devagarinho e quando termina, acocha o nó e faz o Nome-do-Pai. São sete nós. Eles servem para rebater o demônio".

Quanto ao número de nós no cordão, o citado manual dos Cordígeros (pg.6) diz, que podem ser cinco ou três, que significam respectivamente as cinco chagas de Jesus e os estigmas de São Francisco, ou então as três grandes virtudes do Seráfico Pai: A Pobreza, a Castidade e a Penitência. Os cordígeros dizem, que os três nós também significam a sua união com as três Ordens fundadas por São Francisco.

Sobre o simbolismo do nó ainda temos quadras diversas do bendito da Senhora da Conceição:

Levantei de madrugada pra varrer a conceição

Encontrei Nossa Senhora (...) ela me deu seu cordão.

Ó meu padre São Francisco Desatai este cordão

Quem marrou foi Nossa Senhora Sexta-Feira da Paixão (Cinco Chagas!)

(Anônima, Pedra Azul MG. 1978)

São Francisco e São João Me desata este cordão

Foi a santa que me amarrou Sexta-feira da Paixão.

(Antero Gonçalves Branco - Itinga MG.1974)

Estes textos parecem insinuar ligação entre nó e embaraço. Desatar o nó seria salvar. O uso do nó é muito comum na religiosidade popular.

Outro significado de salvar ligado ao cordão vem do subir ao céu pelo cordão, como diz um verso:

Subi no céu pela uma linha E desci pelo um cordão

Subi com Nossa Senhora A Virgem da Conceição.

(Maria dos Anjos Ribeiro - Araçuaí MG. 1979)

Dona Zefa disse:

"O cordão serve para tirar encosto. Para isso, reza uma Salve-Rainha ou um Pai-nosso e açoita o cordão na pessoa. Também é usado o cordão de São Francisco para disciplina na Sexta-Feira da Paixão. Se a pessoa tiver um pecado mortal, ela mesma reza e se disciplina com o cordão preparado". (Araçuaí. MG.1979)

A dona Filó de Araçuaí observa:

"Quando alguém pedia a São Francisco uma graça, ele falava assim: Eu não tenho nada para dar, só tenho minhas orações. Falava e colocava a mão na cabeça da pessoa e mandava fechar os olhos, e fazia sua oração. Depois mandava a pessoa abrir os olhos. Quando a pessoa abria os olhos, já estava repleta de graças".

O cordão libertador de São Francisco é usado para amansar doidos, para ajudar no parto difícil, contra a tentação do demônio e para pôr na cintura dos defuntos.

É interessante que há tão grande semelhança entre os costumes do século XIII e os do nosso tempo.

Penso que agora já temos bastante informações para perceber o sempre rico significado do cordão de nosso seráfico Pai, e para chegar à conclusão que nós talvez ainda não damos o devido valor ao uso dos símbolos e da linguagem corporal.

A dona Luíza Teixeira Ramalho, rezadeira em Araçuaí(l979), ainda diz: "Quem possui o cordão de São Francisco, vive muitos anos".

É isso que desejo a todos os queridos leitores.


Frei Francisco van der Poel, franciscano

Extraído de http://www.religiosidadepopular.uaivip.com.br/cordaosfr.htm acesso em 30 mar. 2010.

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