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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Aquele certo dia

Frei Almir Ribeiro Guimarães,OFM (*)

Dois acontecimentos se entrelaçam no momento em que comemoramos os oitocentos anos do carisma franciscano: o encontro de Francisco com o Evangelho da singeleza e da missão na capelinha de Nossa Senhora dos Anjos e a viagem a Roma para pedir a Inocêncio III a aprovação do estilo de vida novo que Francisco e seus companheiros desejavam viver. Um grupinho de gente simples que, a convite do Altíssimo Senhor, com a anuência da Mãe Igreja, desejam simplesmente viver o Evangelho em todo o seu frescor e, a pedido do Altíssimo, restaurar a Igreja que parecia em ruínas! Afirmação ousada?

Era a festa de São Matias

Conhecemos quase de cor o texto de Tomás de Celano (1Cel 22). “Mas, num certo dia, quando se lia na mesma igreja o Evangelho sobre como o Senhor enviara...” Esse certo dia, segundo uma tradição, remontaria a 24 de fevereiro de 1208. Há os que a colocam em 1209. Era festa de São Matias, quando Francisco ouviu na Porciúncula o Evangelho do envio dos apóstolos por parte de Jesus. Terminava ali o processo vocacional do Santo. Antes já tinha ele dado passos largos na clarificação da vocação: a viagem ao fundo do coração, o encontro com os leprosos e com os pobres, o olhar abissal do Crucificado de São Damião e a alegria de ver os irmãos que começavam a chegar. Parecia que Deus rasgava os últimos véus diante dos olhos de Francisco. Viver do Evangelho, viver para o Evangelho. Francisco pede ao sacerdote que tinha celebrado a missa que lhe explique o texto. O padre, talvez um beneditino do monte Subásio, expôs ao jovem o conteúdo do relato em questão: os discípulos de Jesus tinham recebido ordem de pregar por toda a parte a penitência, não levando nada consigo e colocando em Deus a inteira confiança de que não lhes deixaria faltar o necessário.

Gostamos de repetir a mais não poder a resposta de Francisco: “É isso que eu quero. É isso que busco de todo o coração”.

Fernando Uribe chama atenção para alguns elementos do texto em questão:

  1. Francisco dá uma resposta imediata. Muda de roupa. Passa a dedicar-se à pregação. Seu coração parece aberto para a Palavra de Deus. A partir deste momento não terá mais dúvidas. Ali houve uma manifestação divina para Francisco. Trata-se do “momento” fundamental de sua vida.
  2. Esse encontro com o Evangelho se dá ao longo da celebração da eucaristia, máxima expressão da comunidade cristã.
  3. Na pessoa do sacerdote que dá explicação a Francisco aparece a Igreja, encarregada de esclarecer oficialmente a Palavra de Deus.
  4. Francisco gravou aquelas palavras em sua memória. São Boaventura fala de quatro passos da acolhida da palavra numa vida: escutar, compreender, encomendar à memória, realizar.
  5. Todas as palavras do texto se referem ao modo como devem exercer seu ministério de pregação os discípulos de Jesus. Caminhar com sobriedade, de tal forma que as preocupações terrenas não venham a entorpecer e dificultar a pregação. Os pregadores evangélico-franciscanos são desapropriados de tudo. São leves de bagagens e livres de si mesmos.
  6. Sempre de novo Francisco voltará a isso: o Altíssimo me revelou que eu devia viver segundo a forma do santo Evangelho.

Omer Englebert, refletindo sobre o tema que nos ocupa, escreve: “Dia memorável em que Francisco descobriu o Evangelho! A partir desse dia, com efeito, ao falarmos dele, não nos afastaremos mais do Evangelho. Francisco mesmo não abrirá outro livro. Que lhe importavam as opiniões, deduções ou intuições dos homens agora que sabia o que disse e praticou o Filho de Deus no tempo em que esteve entre nós? Neste sentido é que Francisco quis passar sempre por ‘ um homem iletrado’ . Não se impressiona com autores famosos. ‘Que tenho a ver com Santo Agostinho, São Bernardo ou São Bento’ ? exclama em pleno capítulo, quando lhes contrapõem esses grandes nomes. – Você é pouco razoável! lhe insinuam. - Então, responde Francisco, é porque Deus quer mais um louco no mundo. Saibam, em todo caso, que jamais me guiarei por outra ciência que não seja a dele: a ciência do Evangelho” (Vida de São Francisco de Assis, Trad. de Adelino G. Pilonetto, EST Edições, Porto Alegre, 2004, p. 67).

Era o dia da grande escolha

O Documento da FFB (Reviver o sonho de Francisco e Clara de Assis no chão da América Latina e do Caribe) preparado para a comemoração dos 800 anos do carisma reflete sobre o tema.

Esse “certo dia” é mais do que uma data significativa. É um momento sagrado. Um desses raros momentos no curso da vida, em que alguém se sente visitado por certeza nada comum. “Antes que uma experiência eminentemente religiosa, trata-se aqui de uma experiência humana, testemunhada, aliás, com surpreendente freqüência, por artistas, poetas, homens comuns, enfim. É como se, pelo cerco dos limites humanos, irrompesse, para dentro de suas inquietudes e buscas, uma luz, em cuja claridade é possível vislumbrar os mais obscuros recantos de si mesmo e entrever os segredos sagrados da vida. A tais instantes os homens costumam dar os mais diversos nomes, mas o fenômeno, ainda que com variantes, é sempre o mesmo. Para a pessoa religiosa, aqui é o próprio Deus que, erguendo o véu de seu segredo e transpondo os abismos de seu mistério, revela-se ao ser humano, deixando-o entrever os seus acenos. Por isso Francisco de Assis, ainda que com palavras de imensa humildade, como lhe era próprio, compreende este sagrado instante de sua vida como genuína revelação do Senhor. Uma verdadeira teofania” (p.5).

Naquele momento, nesse certo dia, Francisco tem absoluta certeza de estar sendo visitado por Deus e de forma imediata.

Homens e mulheres de todos os contextos continuam sentindo uma imensa atração por Cristo Jesus. Querem ser seus discípulos. A Igreja deseja que a comunidade cristã em sua totalidade possa ser constituída de discípulos e não simplesmente de seguidores rotineiros de práticas religiosas. Francisco de Assis com seu radicalismo evangélico continua a tocar corações de jovens e menos jovens, de solteiros e casados, de cultos e incultos. Pessoas que visitam seu interior, que não se contentam em viver na casca das coisas, amantes do silêncio e da reflexão, pessoas que estão num processo de esvaziamento, de despojamento podem, à maneira de Francisco e, quem sabe, freqüentando fraternidades bem concretas, fazer a mesma experiência de Francisco. “É isso que eu quero. Isso que busco de todo o coração”!

Um dia que leva Francisco ao Latrão

Francisco se deixa levar. Começa a viver abertamente o Evangelho. Ainda lhe são reservadas surpresas. Irmãos chegam, irmãos que querem viver como ele. Parecia surgir uma nova Ordem religiosa. Num tempo heresias e de condenações, Francisco queria e precisava reformar a Igreja a partir do interior. Por isso vai a Roma pedir a autorização do Papa para viver conforme o Evangelho. Acontece então o momento em que a Igreja aprova a forma de vida de Francisco. São os 800 anos do carisma!!!

“O grupo chegou à residência do papa, o Palácio de Latrão. Não levavam eles nenhum documento extenso, nem nada que se parecesse com uma regra formal religiosa como as que governavam os beneditinos, agostinianos ou cistercienses. Francisco trazia um papel redigido às pressas (perdido logo depois), com alguns textos do Evangelho destinados a inculcar uma simples vida de fé, além de algumas diretrizes gerais sobre o trabalho manual e preces em comum” (...) “Sem mencioná-lo de forma especifica, Francisco claramente vislumbrava um código de vida espiritual que deixava seus companheiros notavelmente em liberdade– podiam viver como eremitas quando sentissem necessidade de intensa oração, ou podiam preferir trabalhar como diaristas, enfermeiros ou pregadores itinerantes” ( Donald Spoto, Francisco de Assis. O Santo Relutante, Objetiva, 2003, p. 144-145).

O dia da Porciúncula se une ao dia da aprovação do gênero de vida desses iluminados e pobres, idealistas e encantadores homens da Úmbria!

Neste contexto damos palavra a G.K.Chesterton: “De acordo com São Boaventura, Inocêncio III, o grande papa, estava no terraço da igreja de São João do Latrão, certamente resolvendo as grandes questões políticas que perturbavam seu reino, quando de repente se viu diante de alguém com roupas de camponês que ele pensou ser alguma espécie de pastor. Ao que parece ele se livrou do pastor o mais rápido possível, e talvez até o tenha considerado louco. Seja como for, Inocêncio não pensou mais naquilo até que, diz o grande biógrafo franciscano, teve naquela noite um estranho sonho. Em sua fantasia, ele viu todo o imponente templo de São João do Latrão, em cujos altos terraços caminhava com tanta segurança, inclinando-se e contorcendo-se horrivelmente contra o sol como se suas cúpulas e pequenas torres fossem abaladas por um terremoto. Ao olhar de novo, viu que uma figura humana sustentava a igreja como uma coluna esculpida viva; e a figura era a do esfarrapado pastor ou camponês que ele despachara no terraço. Seja isso fato ou metáfora, trata-se de uma metáfora bem fiel à inesperada facilidade com que Francisco obteve a atenção e o favor de Roma ( São Francisco de Assis. A Espiritualidade da Paz, Ediouro, 2003, p. 119-120).

Aquele certo dia... Cada um dia de nós se lembra do seu certo dia... dia do começo de tudo... dia em que encontramos frades cheios de zelo, dia em que experimentamos o coração saltitar de alegria e não caber mais no peito, dia feliz da juventude, dia da entrada noviciado, dia da profissão solene...O dia de Francisco se une ao nosso e formamos em ele uma única realidade.

(*) Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM é Assistente Nacional para a OFS e Assistente Regional da OFS do Sudeste II

Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/artigos/almir_070808/artigos_20.php acesso em 25 fev. 2008.


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