PEREGRINOS E FORASTEIROS
Itinerário a ser percorrido no
tempo da quaresma
Itinerário a ser percorrido no
tempo da quaresma
Frei Almir Ribeiro Guimarães,OFM (*)1. Francisco apreciava enormemente esta expressão do Novo Testamento. Somos peregrinos e forasteiros neste mundo. Não nos instalamos. Sempre em marcha, sempre descobrindo novos horizontes, sempre com um bastão na mão, sempre atento às novidades do caminho, sempre acolhendo os que chegam de outras estradas desejando caminhar conosco. Nós, frades, experimentamos muitas vezes a alegria do peregrino, sem muita bagagem, sem seguranças exageradas. Digo muitas vezes, porque muitas outras vezes somos sedentários, pessoas que nos instalamos em nossas posições e impedimos que o Senhor e a vida nos mostrem horizontes deslumbrantes e que poderiam renovar o mundo segundo o coração do Senhor. Ser peregrino e caminhante não significa apenas deslocar-se fisicamente, mas não permitir que o coração se satisfaça com as migalhas adquiridas e sempre olhar na direção do amanhã. Ora, o tempo da quaresma faz a delícia dos que têm a alma de peregrinos.
2. Há tempo para tudo. Tempo para nascer, para viver e para morrer. Tempo para trabalhar e tempo para descansar. Tempo da plantação e tempo da colheita. Tempo do descanso e tempo da labuta. O Sábio, nas Escrituras Antigas, já nos advertia sobre a fugacidade de tudo. Há o tempo para esperar a vinda do Senhor e o tempo para celebrar as glórias do Menino das Palhas, do Deus deslumbrante e belo que se torna fragilidade e arranca lágrimas de júbilo e de encantamento do coração de Francisco de Greccio, tempo dos anjos cantando a glória do Verbo feito carne. Tempo de montar os presépios e tempo de guardar as imagens em caixas grandes no sótão ou no quarto dos fundos... esperando, se Deus permitir, um novo dezembro de nossas vidas. E agora há o tempo da quaresma... Sim, o tempo da quaresma e logo em seguida, o tempo da páscoa. Não se trata apenas de um formalismo, mas de um itinerário a ser percorrido por aqueles que querem ser discípulos do Senhor que ressuscitou e vive em nosso meio. Desnecessário dizer que os dias que viveremos de 25 de fevereiro, quarta-feira das cinzas e do pó, até 8 de abril, quarta-feira da Semana Santa, constituem um tempo propício e favorável. Temos sempre certo pudor em ficar repisando coisas que todos dizem e repetem à saciedade: conversão, mudança de vida, vida nova, penitência. Todas essas palavras, aos ouvidos de muitos de nossos contemporâneos, podem parecer sem sentido e vazias. Apenas um sopro da voz. Mas não é possível fugir do conteúdo dessas palavras. Talvez o único tema necessário a ser vivido e estudado seja esse, ou seja, o da transformação do coração. Quaresma tempo de conversão. Foi assim, dizia Francisco, que tudo começou. “Um dia, eu fui levado a fazer penitência, a mudar o coração. Um dia o doce e o amargo lutaram e pelejaram. No meio da contenda havia um leproso que me repugnava. Eu estreitei essa chaga ambulante e fétida junto de meu peito e passei a gostar do que talvez não fosse tão apetecível... Mudei... Pouco depois deixei de lado a maneira de ver as coisas: minhas camisas de seda, meu charme, sim, todo o charme que eu esbanjava, meu desejo de vitória.. e ao longo da minha vida tentei ser um discípulo daquele que vivera pequenamente e que havia tocado as fibras mais íntimas de meu interior... Comecei a deixar o mundo até o dia em que o Senhor tirou minha alma desta prisão”. Viver a quaresma é viver um itinerário de conversão, itinerário de peregrinos e forasteiros.
3. Cinza e pó em nossas frontes, tais quais somos. Bons e maus. Santos e... demônios. Gente que busca as estrelas do céu e toca com os pés a lama do caminho. Nunca me esquecerei do céu de Lubango, em Angola, céu sem nuvens e à noite... estrelas que pareciam uma festa no deserto... Ouvimos, agora, neste tempo da quaresma, mais uma vez: “Convertei-vos e crede no Evangelho”. Lutar até o fim. Fazer o possível e o impossível para buscar a pérola preciosa e o tesouro escondido no campo da vida, no tempo que passa, antes do fim da caminhada, no tempo propício, fazendo das tripas coração... Um pouco de poeira na fronte e o coração desejoso de começar tudo outra vez. Até agora nada fizemos... Essa a experiência da quarta-feira das cinzas. O desejo de não endurecer o coração, apesar das decepções da vida. A quarta-feira das cinzas é sempre um dia de visita do interior. A mudança não é externa. A oração será mais que um mover dos lábios. Será feita nas cavernas mais íntimas de cada ser, nas profundidades mais densas de cada homem e cada mulher. A oração será feita com as portas fechadas e Aquele que penetra tudo escuta o grito do pedinte já sem voz... A quarta-feira das cinzas pede que a mão direita não saiba o que a esquerda faz, que os discípulos façam o bem, estendam a mão aos que sucumbem, durmam prestando atenção se alguém bate à porta e façam simplesmente o bem, nada mais do que o bem, mas o façam discretamente, sem alardes. Ninguém precisa saber. Lembro-me da história que li num livro romanceado. Um bispo tinha uma irmã que vivia em Ruanda... e indo lá viu sua irmã acariciando o rosto de um velho que morria como se acaricia um anjo de Deus. Poucos contemplaram o amor daquela mulher... Fazia isso sempre, sem platéia, sem gritos de vitória. O eclesiástico se ajoelhou e, talvez, pela primeira vez, encontrou Deus a respeito do qual tanto escrevera e falara, ele com suas vestes roxas episcopais. A quarta-feira das cinzas nos pede ainda que nos privemos daquilo que nos corta da vida, que jejuemos, que não nos engajemos tolamente na sociedade consumista, que façamos o jejum de nós mesmos, mas sempre conservando o rosto brilhante e não com aspecto lastimoso e lastimável. Em tudo isso os cristãos sempre se lembrarão que tudo passa, que somos pó, que ao pó voltaremos. Somos peregrinos e viandantes.
4. Depois das tentações, Marcos diz, que os anjos serviam a Jesus. O paraíso se fazia presente. No itinerário da quaresma a primeira etapa é sempre a da tentação. Jesus é tentado no deserto. Tentação e deserto se conjugam. Encantadora a expressão de Marcos ao afirmar que os anjos do céu serviam a Jesus e que os animais bravios estavam por perto numa celebração paradisíaca. Aquele que confia no Senhor, que nele se joga, esse cria um mundo novo. Vencidas as tentações, o coração se aquieta e a paz domina. Difícil é a arte de escolher. E, no entanto, vivemos escolhendo... Há escolhas e escolhas. Há a escolha de uma vida para Deus, no casamento, na vida religiosa, na vida de todos os dias. Há essa escolha de viver para... o outro, o Senhor, a esposa, o esposo, os filhos, os cambaleantes da vida... Opção, escolha... êxodo de si mesmo, vontade de sair de si. Escolher de verdade, não de brincadeirinha, não de mentirinha... escolher com outros, morrendo, morrendo para nascer. Toda escolha é uma morte... Não se pode escolher tudo porque nos tornamos seres sem densidade. Escolhemos uma esposa e depois outra, fazemos a profissão religiosa e depois esquecemos... Não julguemos ninguém, mas aquele que lança mão do arado e olha para trás, não é digno do reino dos céus. Difícil escolher... escolher cada dia, um dia depois do outro, escolher mesmo quando parece absurdo. Francisco escolhera o Senhor, no deserto da tentação. Quando sentiu que a Ordem lhe fugia das mãos foi para o La Verna e lá se identificou com o Amado. Escolhera o Senhor no frescor de seus dias e no beijo do leproso e, agora, feito um trapo humano, quase cego e meio abandonado dos grandes da Ordem tinha permanecido firme. O Senhor lhe dera o selo das suas chagas. Francisco, com toda sua vida, trouxe o paraíso à terra. Não cair em tentação...
5. O mundo é o mundo e pronto. Os israelitas e palestinos não param de se matar, matar mesmo, gostam da desfiguração... casas destruídas, vidas truncadas, ódio, ódio violento. Essas guerras do tráfico, essa gente que morre na calçada e nas favelas, esses rostos despedaçados e esfacelados. Essas menininhas e menininhos que perdem seus pais... que têm sempre um choro dolente e não conseguem mais rir... Esse rosto desfigurado da mãe da menina que foi fuzilada por estes ou por aqueles, do velho esquelético que perdeu sua casa e seus documentos na enchente de Santa Catarina. E Jesus sobe ao Monte. No alto da montanha, esse rosto humano procura o rosto da Luz. A Luz chega e diz: “Este é o meu Filho, muito amado... escutai-o!” Ele tinha as vestes tão brancas que nenhum lavandeiro da terra conseguia fazer tão brancas... Esse Jesus tão simples, esse menininho das palhas, esse Gesú Bambino, é a luz... Os peregrinos e forasteiros da quaresma encontram-no aqui e ali... Na recitação do Oficio os confrades tão frágeis, tão necessitados de tudo... e por detrás dessa comunidade tão frágil, está a força da luz de Cristo... quando dois ou três se reúnem, sejam eles bons ou maus, o Senhor está lá.... é preciso ir além do rosto franzido e da palavra que fere. A perseverança até o fim nos mostra o semblante do Filho luminoso. A mulher que grita de dor pela morte da filha, o homem que cuidou 17 anos de uma filha em coma, o menino palestino acolhido por uma família de israelitas bons, todos esses poderão ver, no meio da bruma, o rosto transfigurado de Cristo.
6. No templo, o rebuliço. Há os que entram e os que saem. Uns chegam para dizer preces, meio longas, preces que tranqüilizam o interior, preces feitas formalmente. Como é triste ver essas missas sem alma. Gente distraída, celebrante formal. Há os que entram e saem do templo. Há os que confiam demais na religião do sábado e domingo, na religião do templo. Há também, é claro, aqueles que perderam o gosto pela prece com os irmãos no dia do Sol. Não podem mais dizer com os israelitas: “Que alegria quando me disseram vamos à casa do Senhor...”. O estar com os irmãos no templo diante do Senhor é belo e prazenteiro. Ficamos, no entanto, chocados com o Jesus que toma um chicote para expulsar os que haviam transformado o templo numa praça de comércio, de troca, de interesse, de dinheiro... O zelo pela casa do Senhor tomara conta de Jesus. Pensamos em nossas celebrações e auguramos que celebrantes e fiéis tenham coração puro, casto, não dividido, mas inteiro. Não se pode chegar ao templo para barganhar... e nunca esqueceremos que Jesus é o templo novo... uma vez destruído, em três dias, será reedificado. A ressurreição de Jesus toca todos... o homem de boa vontade, sem religião, mas bom, limpidamente bom tem sementes de Jesus, aloja em seu interior a vida do Cristo mesmo sem saber. Não somos homens da religião do templo, mas daqueles que encontram Jesus, o templo de Deus entre nós. Aprendemos também que somos templos do Espírito Santo. Francisco de Assis permitiu que se vendesse um livro que servia ao ofício da fraternidade para socorrer as necessidades da mãe de um frade. Conhecemos o episódio. De outro lado, o mesmo Francisco pede que nos recolhamos nas capelinhas, nos pequenos templos, sempre com um coração puro de tal forma que Cristo possa encontrar seu templo em nós... capela de São Damião, de Nossa Senhora dos Anjos, da Madalena em Fonte Colombo...Nós vos adoramos, Senhor Jesus, Cristo...
7. Deus amou tanto o mundo que lhe deu seu Filho Unigênito... Bem no coração da quaresma os viandantes e peregrinos recebem esta mensagem tonificante... num mundo de individualismo, de salve-se-quem-puder, num mundo em que muitos têm a impressão de não contar há essa palavra de João que nos arranca da solidão... Deus nos amou... e nos amou até o fim... e olhando para o alto, para aquele que foi elevado entre o céu e a terra vemos nascer dentro de nossos corações uma esperança... Cada ser humano é amado por ele... amado de verdade.... No tempo da quaresma sentimos vontade de sentar num canto e contemplar... Damo-nos conta que o Filho não foi enviado para condenar o mundo... mas para salvá-lo. Esse Filho que aderiu ao Pai, colocou sua vontade na vontade do Pai, esse filho de Maria que olhou os lírios dos campos, que acariciou o rosto das crianças, que acolheu com emoção a fé da hemorroíssa, que olhou nos olhos do jovem rico, que foi suspenso entre o céu e a terra, que teve seu olhar turvado pelo suor, pela sangue que descia de sua testa, aquele que experimentou uma imensa solidão até o fim, esse nos amou. O soldado que mata os outros e chora por ter matado, o homem fraco que espanca o filho até à morte, a mulher cheia de dores de uma doença que veio para ficar já cantando a ladainha do desespero, todos esses seres humanos foram e são amados. Há uma porta aberta... Não há motivos para desesperar... Para João, dizem os exegetas, a cruz é o trono de glória, mas também o trono do juízo... o que foi feito a um desses pequeninos a mim foi feito.
8. Antes da Semana Santa, ouvimos o Mestre dizer: “Chegou a hora em que o Filho do Homem será glorificado”. Na caminhada da quaresma, os peregrinos e forasteiros, se colocam diante daquele que vê chegar sua hora. Cristo não teve um destino cego. Não se pode falar em fatalismo. Ao longo de seu viver, nas coisas de todos os momentos, na história de seu povo, nas convulsões de aqui e de ali, no tempo do poder romano, Cristo Jesus foi sentindo que chegava a hora, a hora da entrega, sem restrições. João, o evangelista, nos fala da hora de Jesus num duplo sentido: hora de ser materialmente levantado da terra , hora de morrer, de sair das coisas pequenas, do mundo-mundano, sentir que com a elevação da cruz ele estava sendo exaltado para a suprema forma de amor. Antes, na hora do jardim, ele havia pedido que, se fosse possível o Pai o afastasse daquela hora. Mas a hora se avizinhava. Outros, segundo João, tinham querido que, nas bodas de Cana, ele se manifestasse plenamente. Mas ali ainda não tinha chegada a sua hora. Ele diz à mãe: “Minha hora ainda não chegou”. A hora de Jesus é a hora do sim definitivo. Lá, no deserto dos começos, ele havia dito já que aderia ao Pai... a vida foi passando, os dias chegando e morrendo, as coisas se aceleravam e a luta entre as luz e as trevas se acirrando. Chegara a hora das trevas, mas também a hora da luz. Quando o Filho do Homem foi exaltado no alto da cruz, a luz venceu as trevas. E no ato de entrega, da oferenda da vida ao Pai pelos homens que o Pai tanto amava, Cristo foi vivendo já o começo de sua glorificação. Quando ele fosse exaltado, atrairia tudo a si. Esse molambo do alto da cruz, esse condenado muitas vezes representado como que sentado num banco no alto da cruz, esse Jesus ressuscitou e da cruz brotaram luzes de glória, segundo a perspectiva de João.
9. Que dizer ainda? Com Francisco temos vontade de afirmar que amor precisa ser amado. Nós, franciscanos, lá onde estivermos, não cessaremos de dizer pelo nosso labor e trabalho, pelo testemunho e pela pregação, que esse Jesus precisa ser amado, que o amor precisa ser reconhecido. Nós, poeira da estrada, temos consciência de nossa pequenez. Ao longo da vida, na tentação, fazemos nossas escolhas por Cristo. Fazemos nossas opções. Somos cristãos no seio da Igreja, na fraternidade franciscana e nesse mundo que buscar novos caminhos. Adoramos o Senhor nas igrejinhas mais abandonados e no latejar ainda do coração dessa gente que morre nos hospitais sem uma mão que as aperte ou que toque sua fronte. Sabemos que o Senhor ama esse mundo tão complexo, tão conturbado, mundo das desigualdades e das opressões, mundo do individualismo e do egoísmo, mundo do norte e do sul, mundo de Ruanda e de Gaza, da Complexo do Alemão e da Comunidade de Santa Marta, mundo das bolsas de Tóquio, Frankfurt ou São Paulo, mundo da crise, mundo .. o Senhor a todos ama. E vamos dizer a todos que amor com amor se paga, enquanto houver respiro e fôlego em nós.
10. Agora só nos resta entrar com Jesus na Semana das Semanas, viver os passos de Jesus no dias da Semana santificada, semana da ceia e do lavapés, da desolação e da cruz, do silêncio do sábado santo, do dia do grande descanso e da manhã luminosa da luz pascal... Ele, o nosso amado, venceu o mundo... aleluia.
(*) Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM é Assistente Nacional para a OFS e Assistente Regional da OFS do Sudeste II
Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/artigos/almir_070808/artigos_21.php acesso em 25 fev. 2008.
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