Por José Rivair Macedo
Na medida em que a doutrina cristã foi sendo organizada em torno da Igreja, eclesiásticos estabeleceram o modo correto de conceber a religião. Qualquer divergência em torno dessas concepções representava perigo para a instituição. Por isso, todo tipo de contestação às orientações era considerado crime de heresia e, seus adeptos, tornavam-se criminosos. Na maior parte dos casos, a força servia como instrumento exemplar de punição. Os hereges tidos como traidores eram perseguidos. As penas variavam dependendo da gravidade das idéias ou da influência que exerciam junto à população. Para os casos mais graves, poderiam ser o confisco de bens, a prisão e a condenação à morte na fogueira.
Nos séculos IV e V, várias idéias e proposições religiosas foram declaradas falsas, sendo condenadas como heresias, como o Montanismo, o Arianismo, o Donatismo e o Nestorianismo, porque criticavam a Igreja devido ao seu modo de conceber a doutrina. Todavia, quando os movimentos de contestação voltaram a se manifestar a partir do século XII, as punições foram mais severas. Desta vez, as críticas apresentadas pelas seitas dos Valdenses, dos Cátaros e dos Irmãos do Espírito Livre, referiam-se ao modo de vida dos representantes clericais. Eles foram excomungados, perseguidos pela Inquisição e exterminados.
Já, a partir do século XIII, as perseguições aos movimentos opositores se intensificaram. Os Tribunais da Inquisição foram órgãos repressivos, responsáveis pelo aniquilamento das heresias medievais. Estas assumiram diversas formas. Nos séculos XII e XIII relacionaram-se com o ideal de pobreza como meio de aproximação de Deus, simultaneamente apontando os desvios na visão da Igreja conceber a religião cristã.
A Ordem dos Irmãos Menores de Assis foi um movimento que pregava a pobreza, a humildade e a paz. Pretendia regenerar a Igreja tornando-a pura, sem instituições ou hierarquias. Em 1230, após a morte de seu líder, Francisco de Assis, uma bula atenuava a obrigação da pobreza, permitindo aos frades menores a posse de bens para suprir suas necessidades materiais. Esse documento deu origem a uma divisão na ordem. Dividiram-se em espirituais e beguinos. Ambos preservaram o ideal franciscano original e começaram a afastar-se das orientações oficiais. Inicialmente, foram toleradas pelas autoridades eclesiásticas. Em 1315, foram condenadas e perseguidas pela Inquisição.
Em meados do século XIII, surgiu na Itália, outra seita, influenciada pelo franciscanismo, chamada pseudo-apóstolos. Esta era composta por pessoas sem nenhuma formação religiosa e seu líder chamava-se Geraldo Segarelli. Considerava seus seguidores novos apóstolos de Cristo. Em 1300, foi condenado pela Inquisição e queimado numa fogueira. Dolcino de Novara, sucessor de Geraldo, conseguiu milhares de adeptos. Afirmava que a Igreja tornara-se corrupta quando começou a aceitar bens e riquezas e teria se afastado da pobreza evangélica. Foram massacrados e muitos aprisionados e supliciados. Dolcino foi julgado e condenado à morte.
Outro fenômeno herético diz respeito a uma seita conhecida como Portadores da Cruz, Irmãos da Cruz ou Irmãos Flagelantes. Nesse caso, os adeptos castigavam o próprio corpo, batendo-se com um flagelo. Iniciou-se na Itália, em 1260. Acreditavam na purificação através do sofrimento por meio da autoflagelação coletiva. As cidades eram abertas aos bandos, que se consideravam escolhidos para tirar os pecados do mundo. Cada grupo tinha um líder, a quem “os irmãos” chamavam de “mestre”. Inicialmente, os eclesiásticos acolheram os flagelantes. Com o tempo, suas pregações voltaram-se contra o clero. Tornou-se subversiva quando afirmaram que eram capazes de realizar a salvação sem a ajuda da Igreja. Suas procissões duravam trinta e três dias e meio, pois os salvadores se autoflagelavam durante o número de dias correspondentes à idade de Cristo. Durante esse tempo, permaneciam sob rígida disciplina. Em qualquer cidade que entrassem praticavam duas flagelações públicas durante o dia e uma à noite, em local privado. Aqueles que assistiam ao espetáculo considerava-os “mártires”. As palavras com as quais os “mestres” acusavam a Igreja, os “grandes” e os judeus estimulavam os pobres a praticar pilhagens e massacres. Acusados de assassinatos foram condenados. Grupos inteiros arderam nas fogueiras da Inquisição.
Finalmente, novas vozes erguiam-se contra a Igreja. Eram personalidades respeitadas que desenvolviam argumentos a respeito da distinção entre o poder material e o espiritual. Entre eles, esteve um professor universitário chamado João Huss. Ele denunciava a falsidade dos milagres, insistindo na necessidade de se procurar o Cristo nos evangelhos. Em 1414, Segismundo, o imperador do Sacro Império Romano-Germânico, enviou-o para o Concílio de Constança, onde deveria defender-se das acusações de heresia e rebelião contra a Igreja. Como não renunciou suas idéias, foi considerado herege, sendo queimado em praça pública. Os tchecos revoltaram-se. Seus ideais detonaram o movimento conhecido como Hussismo. O conflito iniciou-se em 1419. Foi liderado por um influente chefe militar: João Zizka. Condenavam a riqueza da Igreja e só valorizavam o que estava escrito nas Sagradas Escrituras como artigo de fé. Com o tempo, beguinos e Irmãos do Livre Espírito juntaram-se a eles. Nas montanhas do sul da Tchecolosváquia foram fundadas suas comunidades. Nelas, a propriedade extinguiu-se e a autoridade civil perdeu seu valor. Milhares de desfavorecidos venderam seus bens, entregando o dinheiro aos pregadores. Para eles, seus opositores deveriam ser exterminados. João Zizka liderou-os em sucessivas batalhas em que saíram vitoriosos.
Em 1426, com a morte do militar, o padre Procópio, “O Grande”, assumiu a luta, esmagando as tropas inimigas. Várias cidades os apoiaram para livrar-se da autoridade imperial e milhares de camponeses juntaram-se a eles. Em agosto de 1431, no Concílio da Basiléia, a Igreja decretou uma cruzada contra os hereges. Em 30 de maio de 1434, na batalha de Lipar, foram massacrados. Todavia, suas comunidades persistiram na Tchecolosváquia, durante os séculos XV e XVI, influenciando no episódio da Reforma Protestante.
Macedo, José Rivair. Religiosidade e messianismo na Idade Média.
São Paulo : Moderna, 1996.
96 p. : il. (Colecao desafios)
ISBN: 8516014355 (broch.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário