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terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Viver a pobreza em fraternidade


Frei Miguel de Negreiros

in Cadernos de Espiritualidade Franciscana, nº 9, pp. 24-33.

Conferência proferida no Curso Complementar

de Formação Franciscana. Fátima, Julho de 1997


Sendo a pobreza evangélica um dos aspectos principais da nossa vida franciscana, lembrei-me de a comparar a uma casa espiritual que devemos edificar, no ambiente da nossa fraternidade.

E logo me ocorreu o que disse Jesus: "Quem escuta as minhas palavras e as põe em prática é como o homem prudente que edifica a sua casa sobre a rocha... Quem ouve as minhas palavras e não as põe em prática é semelhante ao homem néscio que edifica a sua casa sobre a areia" (Mt 7,24-27).

Se compararmos esta casa com o nosso projecto de pobreza evangélica, também podemos afirmar: aquele que ouve o convite do Senhor "vem e segue-Me" e, na verdade, deixa tudo e todos para seguir os passos de Jesus, esse edifica a casa do seu voto de pobreza, sobre a rocha!

Aquele, porém, que ouve o convite do Senhor: "vem", e vai, mas sem partir da sua terra, ou seja, sem abandonar tudo quanto o envolve - família, parentela, amizades, posição social, a casa paterna e toda aquela teia das suas relações de cidadão deste mundo, etc., esse edifica a sua pobreza sobre a areia!

Do mesmo modo, aquele que ouve o convite de Jesus: "segue-Me", e dispõe-se a segui-Lo mas sem deixar radicalmente todos os seus bens e tudo quanto tem, quanto adquiriu, quanto herdou, ganhou e recebeu, ou virá a adquirir, a herdar e a receber, esse edifica a sua pobreza sobre a areia.

Assim, também, o que ouve o convite do Senhor: "vem e segue-me" mas não se resolve decididamente a renunciar a si mesmo: aos seus critérios, aos seus pontos de vista, à sua mentalidade, à sua mundivisão, às suas inclinações naturais, ao seu amor próprio e à idolatria do seu eu, esse edifica a casa da pobreza sobre a areia.

Aquele, porém, que edifica a pobreza sobre o seguimento da pessoa adorável de Jesus que ele conhece, ama, e a quem se entrega apaixonadamente de alma e coração, esse resiste a todas as intempéries.

Cai a chuva da sociedade de consumo que inunda todos os escaparates da nossa praça.

Engrossam os rios dos bens supérfluos que nos alagam com a sua abundância. Sopram os ventos de todas as vaidades e de todas as modas, e de tudo quanto reluz e encanta os sentidos.

Mas a casa da pobreza não cai porque está fundada sobre a rocha.

Aquele que edifica o seu projecto de pobreza, unicamente sobre uma certa simpatia por um estilo de vida pobre que outros colegas ou amigos já adoptaram e que segundo as leis implica uma certa renúncia ou parcimónia no comer, no vestir e no habitar, mas sem uma referência inspiracional e vital, e profunda à pessoa de Jesus pobre e crucificado, esse não resiste às intempéries e investidas da riqueza.

Cai a chuva da sociedade de consumo, e ele deixa-se tentar por tantas coisas que seduzem aqueles que ainda são presa fácil dos bens materiais.

Engrossam os rios da abundância dos bens supérfluos, que estão muito para além das verdadeiras necessidades e reais carências da vida humana, e ele deixa-se enredar por um sem número de objectos pessoais de que não precisa para viver mas de que não se consegue libertar!

Sopram os ventos de todas as novidades e curiosidades que vêm rechear o nosso teor de vida - no comer, no vestir, no calçar, no passear, no divertir-se, no conviver - e lá somos nós atraídos para dar nas vistas e perdemos muito da nossa simplicidade e austeridade, devorados pelos últimos gritos da moda.

E a nossa Casa da Pobreza desmorona-se e é grande a sua ruína.

Concluímos que viver a pobreza em fraternidade é, antes de mais, seguir a doutrina e exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo, que diz: "Se queres ser perfei­to, vai e vende quanto tens e dá o seu preço aos pobres, e terás um tesouro no Céu, e vem e segue-me". (Mt 19,2 1; 1 Reg. 1,2).

Continuando a comparar a nossa pobreza à casa que devemos construir e onde queremos viver, podemos atender a cinco aspectos fundamentais da mesma casa: a planta, a cor, as janelas, as portas e o telhado.

Se a vemos de longe, é a configuração do telhado que primeiramente nos é dado observar. Se a vemos de perto, o que mais imediatamente nos fere a sensibilidade é a luminosidade da sua cor: mais clara ou mais escura; mais viva ou mais mortiça; mais agressiva ou mais discreta, ou, então, a total ausência de cor!

Em segundo lugar, damo-nos conta das linhas da sua planta: maior ou mais pequena; mais linear ou complicada; mais tradicional ou mais ousada; com ou sem varandas e escadas!

A seguir, reparamos nas suas janelas: mais rasgadas ou menos abertas; mais desenhadas ou mais rectangulares; em maior ou menor número, em proporção à medida da planta.

Finalmente, detemo-nos a observar as portas: se largas ou mais estreitas; mais altas ou mais baixas; mais fortes ou mais frágeis; com desenhos de alto relevo ou mais lisas.

Vendo-a de fora, não conseguimos apercebermo-nos do recheio e da mobília. Mas tanto de fora como de dentro, há uma coisa que não conseguimos ver: os seus alicerces. O mais fundamental não se vê. E nos alicerces há um elemento ainda mais importante: a pedra angular.

Se o mais fundamental não se vê, nem por fora nem por dentro, o mais precioso só se vê por dentro: a beleza da decoração e a preciosidade da mobília.

Comparando a pobreza a esta casa, podemos dizer que a pedra angular que dá coeo aos alicerces e firmeza a todo o edifício é a pessoa adorável de Jesus! É Ele quem toma possível e dá fundamento à pobreza evanlica! Quem usufruir da sua amizade pessoal encontrou o tesouro escondido cujo valor supera infinitamente todos os outros valores.

A decoração e o recheio da mobília que só se vêem penetrando no interior da casa, significam a pobreza espiritual com todo o recheio das bem-aventuranças. É toda a riqueza dos dons do Espírito Santo. A felicidade e a alegria que estes dons nos transmitem fazem com que nos sejam supérfluas e incómodas todas as riquezas materiais. O Esrito de Jesus que nos inunda e se nos oferece enche-nos de vida, e vida em abundância!

Assim como quem se deleita com a beleza e a maravilha interior da casa ­ aposentos próprios, cozinha, lareira, dispensa recheada, sala dei jantar, sala de estar, conforto físico e acolhedor, alimentação abundante e saborosa, doce convívio, am­biente de festa, de luz e som, etc. - não se preocupa com o que se vê no exterior da casa, assim também, quem experimenta a riqueza da pobreza espiritual não se preocupa com a riqueza material, simbolizada pelo exterior da casa.

Na verdade, quem consegue desfrutar da riqueza interior da casa não se importa com a configuração do telhado, com a luminosidade da cor de fora, com as linhas exteriores das janelas, com a altura ou largura das portas nem com as dimensões da superfície das paredes.

Assim, quem vive da plenitude gratificante dos valores espirituais, que lhe enchem a alma de gozo e de alegria, não pode entusiasmar-se nem deixar-se prender pelos bens passageiros, superficiais e exteriores. Entre estes bens espirituais, contam-se em primeiro lugar os dons do Espírito Santo (Sabedoria, Entendimento, Conselho, Fortaleza, Ciência, Piedade, Temor de Deus); a ternura do amor de Deus Pai que nos chama a tomar parte na Sua vida divina; a graça, a bondade, a justiça, a amizade, a liberdade e a paz que nos vêm de Jesus, nosso Caminho, Verdade e Vida!

De facto, que vale a esperteza dos que triunfam na vida, comparando-a com a Sabedoria do Espírito, pela qual somos capazes de saborear a vida em plenitude, experimentando como Deus é bom, como é bela a vida e como é agradável e jucundo viverem os irmãos em fraternidade!?

Que vale todo o fulgor da inteligência humana se o compararmos com o Dom do Entendimento que é participação, já na terra, da luz da glória que nos iluminará no Céu?

Que vale toda a cultura dos nossos sábios e toda a experiência dos anciãos, a quem recorremos para pedir opinião e parecer, nos momentos difíceis da vida, comparada com o Dom do Conselho, pelo qual discernimos, a cada hora e momento, qual a vontade de Deus a nosso respeito?

Que vale, toda a força física e moral dos maiores valentes e audazes, que se entregam, sem temor, às mais ousadas façanhas, se a compararmos com o Dom da Fortaleza, pelo qual somos capazes, com o Espírito de Cristo, de levar até ao fim, com a fidelidade dos heróis, a empresa espiritual a que lançamos ombros, quando renovamos as promessas do nosso baptismo, quando fizemos o juramento da nossa profissão de fé cristã, e, quando nos entregamos generosamente à nossa vida consagrada?

Que vale toda a investigação dos iluminados deste mundo que perscrutam os segredos da Natureza e os meandros da filosofia da história, sem conseguirem desvendar o mistério da vida, se a compararmos com o Dom da Ciência, pelo qual conseguimos olhar para o Homem e para o Universo, com a limpidez esclarecido e esclarecedora do próprio olhar de Deus?

Que vale todo o sentimento de consideração, compaixão e pena e até mes­mo de solidariedade e justiça social, entre os seres humanos, se o compararmos com o Dom da Piedade, pelo qual nutrimos, nas nossas relações com Deus transcendente, um carinhoso sentimento de filiação divina, de quem se sente profundamente amado por Deus Pai e Mãe? Dom da Piedade. pelo qual também experimentamos nas nossas relações familiares, sociais e económicas. políticas e religiosas, um sentimento de caloroso afecto para com todo o ser humano, a quem amamos como irmão?

Que vale todo o deslumbramento e todo o espanto perante o belo e o horrível da natureza; perante as forças desencadeados do universo em fúria; perante o poder destruidor das guerras clássicas e modernas; perante o prestígio avassalador dos super-homens, se tudo isto compararmos com o Dom do Temor de Deus, pelo qual nos iniciamos na sabedoria da vida" Pelo qual nos introduzimos na atmosfera do encanto estremecedor de quem contempla a grandeza, o poder, a sabedoria, a glória e a santidade de Deus?

Numa palavra, que valem os bens temporais, materiais ou morais, em comparação com os bens do Espírito, que transcendem o tempo e o espaço e perduram para além da morte?

Quem desfruta a felicidade da riqueza que nos vem da pobreza espiritual não pode deixar-se seduzir pela riqueza material.

Concluímos que para viver a pobreza em fraternidade, no tocante aos bens materiais, é necessário deixar-nos antes apaixonar pelos bens espirituais, ou seja, pela riqueza espiritual da pobreza. A pobreza espiritual mais do que o desprendimento dos bens materiais, exige o amor aos valores que dimanam directamente do Espírito de Cristo.

A nossa pobreza evangélica franciscana é uma riqueza alternativa à riqueza material. Brota duma plenitude e não duma carência. É a "altíssima pobreza" de São Francisco, que "nos faz herdeiros e reis do Reino dos us, pobres de coisas materiais mas ricos de virtudes" (2 Reg. 6,4). É uma bem-aventurança. (Mt 5,3).

Continuando com a comparação da casa e da pobreza, vejamos agora o que significa a própria planta da casa, com as suas linhas arquitectónicas.

Podemos comparar a planta da casa à nossa situação social de pobres, remediados ou ricos.

Uma casa pequena e térrea poderá significar a pobreza dos que não conseguem ultrapassar uma situação económica verdadeiramente difícil e mortificante.

Uma casa mais ampla, embora de divies modestas, poderá significar uma situação sócio-económica desafogada.

Uma casa espaçosa, bela e articulada em rias varandas, poderá significar uma situação de confortável riqueza.

A nossa pobreza a que tipo de casa se poderá comparar? Não sendo a pobreza evangélica definida pela situação de carência ou de miséria, mas o resultado duma plenitude de riqueza interior espiritual, a nossa casa não terá de ser forçosamente uma habitação privada do mínimo de condições vitais, pois dentro dela devem morar pessoas revestidos com a dignidade de filhos de Deus.

Não será simplesmente a casa dos remediados e muito menos a casa da classe média, se nessa casa se viver a sofreguidão de possuir cada vez mais e a insatisfação gananciosa de quem não sabe viver honradamente pobre, tanto na abundância como na miséria. Dizia S. Paulo: "Aprendi a contentar-me com o que tenho. Sei viver na penúria e na abundância. Em tudo e em todas as circunstâncias tenho aprendido a ter fortuna e a ter fome, a ter abundância e a padecer necessidade" (Fil 4,12).

Podemos viver, com verdadeiro espírito de pobreza, tanto numa casa miserável, como numa razoavelmente confortável, sem nos deixarmos contaminar pelo espírito de revolta, de cobiça ou de ambição. Poderemos ser pobres se na casa miserável não formos uns revoltados; e na casa remediada, não formos uns instalados.

Muito menos, será o símbolo da nossa pobreza a casa grande e majestosa, ornada de pormenores requintados. Esta seria a casa dos ricos. No entanto, se apenas for fisicamente grande, suavizada a sua grandeza pelos traços da simplicidade, e estiver toda ela orientada para servir a finalidade evangélica para que foi pensada, poderá, também ela, ser a casa da nossa pobreza, se nela soubermos morar e conviver, "como peregrinos e estrangeiros" (2 Reg. 6,2).

A nossa pobreza tem de ser forçosamente sinónimo de humildade: "servindo a Deus em pobreza e humildade, vão com muita confiança pedir esmola" (2 Reg. 6,2).

Para sermos pobres é necessário que a humildade resplandeça na nossa pessoa e nas nossas coisas. Como diz S. Francisco devemos ser simples e servos de todos (Cf. Test. 19). Mesmo as casas grandes se forem necessárias, têm de ser humildes na sua apresentação: de aspecto rústico e precário" (2 Cel 56). "Tudo deve proclamar ­ cantar mesmo - a sua condição de peregrinos e exilados" (2 Cel 60). "Exurava os que na Ordem usavam roupas a mais e, sem necessidade, as queriam de pano macio" (2 Cel 69).

O próprio exercício da mendicância, proibida às Ordens monásticas, era uma experiência de humildade (Cf. 2 Cel. 74 e 77).

Passamos, agora, ao simbolismo das janelas.

As janelas servem, fundamentalmente, para deixar entrar o ar e a luz, dentro da casa: dois elementos indispensáveis à vida! Servem também, para através delas, alongarmos o nosso olhar para o horizonte longínquo da terra e do céu, sem sairmos de casa.

Fazendo, de novo, a aplicação à nossa pobreza, diremos que queremos ser pobres com a riqueza da brisa do Espírito Santo e a luz da Verdade do Mestre Jesus. Brisa e luz que nos entram pelas janelas da alma. Pobres, sim, mas com a riqueza que nos vem de Deus!

Somos pobres se a brisa do Espírito nos invadir a alma com o dom inebriante da oração, e o esplendor da luz da Verdade, nos iluminar e aquecer com o dom da contemplação. Então, o nosso coração, cheio da plenitude de Deus, dispensará toda a utilidade que nos vem das criaturas!

E quando as janelas forem tão exíguas, que mal nos deixem divisar uma nesga do azul do Céu, então compreenderemos que a pobreza é também uma exigência de aceitar a vida em paz e confiança, mesmo quando não descortinamos o sentido pleno da existência, no meio de grandes provações!

Ser pobre é também saber aceitar a vida, sem entender!

A experiência da oração e da contemplação que fazia de São Francisco, mais do que um orante, a própria oração vivente (2 Cel 95) era o segredo da sua pobreza. Todo inundado e absorto em Deus, pela oração contemplativa, nada mais desejava possuir. Deus era tudo para ele.

Detenhamo-nos, agora, na simbologia das portas. Estas, largas ou estreitas, servem fundamentalmente para abrir e fechar a casa.

As portas fechadas, que nos vedam a entrada no interior da casa, dizem-nos que para sermos pobres não devemos ter acesso ao lucro imoderado, que ofende a justiça; ao luxo que ofende os pobres, e à ostentação que ofende os humildes.

A nossa pobreza para ser verdadeira tem de ser decididamente austera. Tudo o que for para além do necessário ofende a pobreza!

As portas abertas que convidam a entrar, e facilitam o ingresso dos moradores nas suas habitações, sugerem-nos uma vida de pobreza que abra as portas das nossas casas aos pobres, aos mendigos; aos marginais e enjeitados; aos excluídos e expulsos.

Se a nossa casa não acolher os pobres deambulantes e inadaptados, vagabundo sem eira, nem beira, nem ninguém que os queira, não será casa de pobres que professam a pobreza evangélica, mas casa de senhores que se fecham nas suas fortalezas.

O entusiasmo de São Francisco pela austeridade radical e pela pessoa dos pobres vem-lhe da sua paixão pela pessoa de Jesus pobre e crucificado que ele vê retratado em todos os que sofrem penúria.

Por isso a pobreza é uma noiva maravilhosa para S. Francisco porque lhe faz lembrar Aquele a quem ele ama com amor esponsal. Não sendo a pobreza quem o encanta, mas o Cristo pobre, Francisco enamora-se da pobreza porque nela contempla o seu Amado!

Se passarmos a comparar a nossa pobreza à cor que reluz, que mais ou menos brilha no exterior da casa, podemos tecer as seguintes reflexões:

Tudo quanto temos e usamos dever ter um tal colorido que:

- não chame a atenção do curioso, nem provoque o ciúme do invejoso;

- não agrida nem a simplicidade do humilde, nem a carência do indigente;

- não desperte a cobiça do ambicioso nem a raiva do ganancioso;

- não espicace o instinto do ladrão, nem atice a sofreguidão do avarento;

- não convide o assalto à mão armada ou desarmada, nem a aventura dos amigos do alheio.

Numa palavra, tudo deve ser tão simples e despretensioso e discreto que não dê nas vistas a ninguém.

Assim deve ser a nossa maneira de ser e de estar, de vestir e de habitar e de nos apresentarmos.

S. Francisco diz-nos na Regra: "Todos os irmãos vistam-se com hábitos pobrezinhos e possam remendá-los de burel e outros pedaços, com a bênção do Senhor" (2 R. 1, 1 6). Não devemos desprezar nem julgar mas também não podemos imitar os que andam com vestidos macios e de cores e usam comidas e bebidas delicadas" (2Reg. 1, 17).

Finalmente, recorrendo à comparação do telhado, que marca os limites extremos da casa, em comprimento, largura e altura, podemos chegar às seguintes conclues, acerca da nossa pobreza.

1- o nos devemos perguntar até onde podemos usar e gastar, sem ofender gravemente o voto de pobreza.

É que o voto de pobreza não se fundamenta num acordo jurídico entre duas partes interessadas num negócio, com consequências legais; mas sim, no seguimento apaixonado pela pessoa maravilhosa de Jesus, cuja pobreza nos encanta!

Ora, num encanto, como o da pobreza evangélica, que é sinónimo de amizade enamorada, não cabem as medidas do válido e do inválido, do lícito e do ilícito, do permitido e do proibido, mas tão somente o dom sem medida de quem se entrega, por amor, a quem, por amor se entregou.

2- Devemo-nos perguntar, a respeito do uso das coisas e dos gastos a fazer, até onde podemos renunciar, até onde podemos levar a nossa austeridade e penitência, aonde podemos abdicar e dispensar os bens terrenos; numa palavra, até onde podemos esticar a exigência da pobreza material, sem deixar de dispor do que for necessário e conveniente para o desempenho das nossas obrigações e da nossa missão.

É que o Reino de Deus, embora possa e deva contar com todos os nossos recursos estruturais e pessoais, materiais e espirituais, apesar disso não depende, no seu desenvolvimento dinâmico, desses mesmos recursos, mas sim de outros valores superiores. Refiro-me aos valores que constituem a própria natureza do Reino: a perenidade e a universalidade; a santidade e a amizade; a verdade e a vida; a justiça e a liberdade; o amor e a paz.

Ora, para viver estes valores não é preciso dispor nem de muito dinheiro, nem de muitos bens destinados à nossa habitação, à nossa comida e bebida, ao nosso vestido e à nossa vida profissional.

Podemos comer suficientemente, vestir decentemente, habitar dignamente e trabalhar eficazmente por um mundo melhor e por uma Igreja mais renovada, sem nos apoiarmos no máximo de recursos materiais permitidos. Pelo contrário, na medida em que podermos dispensar, prescindir e diminuir os valores relativos, nessa mesma medida daremos cada vez mais lugar aos valores do Reino já mencionados.

Ser pobre é, portanto, edificar a Casa da Pobreza sobre a rocha do seguimento de Jesus Pobre! Quem edifica a pobreza, tendo só em conta as leis das Regras e das Constituições, sujeita-se a edificar sobre a areia!

Construir a Casa da Pobreza é, portanto, ter em conta que o mais importante da casa não é o que se vê por fora mas o que está escondido lá dentro. É o recheio dos valores espirituais a que chamamos pobreza espiritual.

Só é pobre, segundo o Evangelho, aquele que fazendo a experiência da plenitude de Deus, de nada mais se interessa, neste mundo, e sente necessidade de rezar, como S. Francisco: "Meu Deus e meu Tudo" (Flor. cap. II).

Construir a Casa da Pobreza implica ter em conta que tanto na casa pequenina desprovida de tudo, como na casa modesta e minimamente fornecida, como na casa ampla e de maiores dimensões, se pode ser pobre, se tivermos o espírito de S. Paulo que aprendeu a contentar-se com o que tinha, e sabia viver na abundância e na pe­núria.

Construir a Casa da Pobreza é, portanto, ter em conta que as nossas "janelas" devem-nos deixar entrar a brisa do espírito da oração e a luz da Verdade que nos inunde com o êxtase da contemplação.

Só o orante poderá ser pobre!

A pobreza é uma condição para orar!

Construir a Casa da Pobreza é, portanto, ter em conta que as nossas "portas" devem fechar-se aos bens supérfluos e abrir-se aos pobres mais necessitados do que nós.

Construir a Casa da Pobreza é, portanto, ter em conta que a cor das nossas casas deve emprestar, a tudo quanto possuímos, um colorido tão austero e tão simples que a ninguém cause inveja ou cobiça.

Construir a Casa da Pobreza é, finalmente, ter em conta que os nossos "telhados" devem-nos marcar os limites não do máximo permitido mas do máximo dispensável.


CONCLUSÃO


O Concílio Vat. II pede-nos novas formas de pobreza. Insiste em que a pobreza seja real e não somente uma questão jurídica de quem tem licença da Santa Sé ou dos superiores.

Uma das formas mais actuais da pobreza é o trabalho honesto de quem ganha o pão de cada dia com o suor do seu rosto. Trabalho que é elogiado por São Paulo que escreveu aos Tessalonicenses: "Não comi de graça o pão de ninguém ... quem não quiser trabalhar não tem direito a comer" (2 Tess 3,8. 10).

E S. Francisco deixou-nos no seu Testamento: "Firmemente quero que todos os irmãos trabalhem" (Test. 2 1).

Uma outra forma nova de pobreza será a partilha dos nossos bens para que deles possam usufruir todos os necessitados do mundo. O sentido universal de todos os bens, que é tese fundamental na doutrina social da Igreja, deve aplicar-se a nós com mais exigência e urgência.

Se a Fraternidade é a nossa forma de vida dentro da Igreja, ela tem de traduzir-se em SOLIDARIEDADE, nas nossas relações sociais com os homens e as mulheres do nosso tempo.

E termino com a palavra de São Francisco: "NADA DE VÓS MESMOS RETENHAIS PARA VÓS, A FIM DE QUE TOTALMENTE VOS POSSUA AQUELE QUE TOTALMENTE SE VOS DÁ" (CO 29).


Extraído de http://www.capuchinhos.org/francisco/estudos/viver_pobreza_fraternidade.htm acesso em 20 Jan. 2009.

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