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quinta-feira, 12 de março de 2009

Era Francisco de Assis um revolucionário?

Era Francisco de Assis um revolucionário?
questão de interpretação(1)

Francisco de Assis, patrono dos pobres”
(D. Helder Câmara)

Fr. Cristóvão Pereira (2)


No percurso do ano de 2008, a Família Franciscana comemora 800 anos da aprovação da sua Regra, chancelada por Honório III. A Regra vem a ser a explicitação do carisma franciscano, isto é, da intuição fundante que o Poverello de Assis tivera, movido pelo Espírito do Senhor, ao ouvir o texto evangélico na igreja de Porciúncula, juntamente com seus primeiros companheiros, depois de muita indecisão na procura do processo de discernimento do que o Senhor queria deles.

A Família Franciscana brasileira elaborou uma vasta programação ao ensejo do evento, culminando-a com um Congresso Franciscano em Brasília. São encontros, seminários, conferências, publicações. Entre nós, franciscanos da primeira Ordem, fazemos a distinção entre Regra Bulada e Regra não Bulada. O que, em última análise, não se diferenciam fundamentalmente. Pode-se dizer, então, que a Regra Bulada é a confirmação jurídica da Regra não Bulada (Frei Celso Márcio Teixeira, ofm: 2007). Para nós, a prioridade está no espírito com que se lê, vive a letra da Regra.

O que pretendemos com a nossa reflexão é entender o quanto o “Poverello” de Assis foi um revolucionário no seu tempo; e como nos interpela a se um revolucionário nos dias de hoje.

O que não se pode permitir é um reducionismo crasso, isto é, fazer uma transposição de uma época para outra, sem levar em conta as nuances, as mudanças culturais de um período para o outro! Exigir do santo de Assis o mesmo nível de consciência política que, hoje, nos é cobrado! O que se pretende é tentar uma contextualização da figura histórica do santo de Assis. O que ele foi para o seu tempo (Igreja – Mundo). O que, como franciscanos, somos provocados a ser no Mundo e na Igreja de hoje.

No séc. XIII, estamos em plena decadência do Feudalismo e nos primórdios do sistema capitalista, com o surgimento da burguesia. “Burgo” significa um lugarejo que se vai tornando um centro comercial com uma reduzida industrialização nascente. Um exemplo: o pai de Francisco, Pedro Bernadone, era grande comerciante de tecidos com uma pequena indústria de tinturaria. P. Bernadone, impregnado pelo espírito capitalista em expansão, teve dificuldade com o filho a quem esperava entregar a direção de seus negócios de quando idoso. Generoso, mão aberta, começou a dar prejuízo ao pai. Esse o manteve preso no sótão de sua mansão; por fim, o processou junto ao Podestá da cidade, o Bispo Guido. Aos prantos de sua mãe, dona Picá, foi expulso de sua casa.

O caráter profético-revolucionário de Francisco foi seu rompimento com a mentalidade burguesa de seu pai, de sua classe social, com o espírito dominante da época: a burguesia comercial, o capitalismo mercantil em plena expansão. A busca do enriquecimento (mais-valia-lucro) às custas da plebe desempregada, oriunda do Feudalismo decadente!

Foi sua mudança de lugar social (Boff, Leonardo: 1986). Daí a sua ojeriza em relação ao dinheiro. Os irmãos que iam chegando recomendavam que ganhassem o pão-de-cada-dia com o trabalho de suas mãos; não fossem proprietários de bens, nem capatazes, não buscassem títulos honoríficos. Caso fosse necessário, recorrem à mendicância (Regra Não-Bulada, cap. IV-VI).

Esta ruptura com o mundo burguês, seu distanciamento de uma igreja poderosa, rica, honorífica (Alto Clero), indo morar com os leprosos, marcam sua intuição revolucionária. “Quando o Senhor me deu irmãos, eu mesmo descobri o que queria, ‘Exivi de saeculo’ [deixei o mundo], e fui morar com os leprosos (Testamento)”. Viver com o irmãos (fraternidade), em diácono, talvez para não ser considerado como hereje, renunciou a todo cargo e condecoração, tão abundante no meio eclesiástico. Seu grupo pioneiro era de cunho laical. Viver pobre com os pobres, como itinerantes anunciando a Boa Nova do Evangelho de Jesus, do qual a hierarquia da Igreja se distanciara!

De viver com os pobres para os pobres, tornou-se um pobre (Testamento), inspirado na práxis de Jesus de Nazaré (Encarnação – Vida oculta na carpintaria de Nazaré – talvez, junto com José, carapina nas construções da cidade de Séforis. Vida pública ambulante, na qualidade de Rabi e Nabi, itinerância e vida – sem bens e casa para morar – paixão, crucifixão e morte “extra murus”, entre dois ladrões), Francisco foi uma figura impactante para o seu tempo. Em tudo isso um revolucionário.

O Movimento Franciscano é um movimento de irmãos que se entendem como “Frades Menores”, sob inspiração do próprio Francisco. Os “maiores” vinham da nobreza feudal. Muito menos se deixou iludir pela ambição de riqueza da nova classe social nascente, a burguesia. Disso, seu pai, foi um exemplo! (Boff, Leonardo: 1986).

Contextualização

É notório que não podemos esperar de Francisco e de seu tempo uma análise científica de suas estruturas sociais. Uma consciência crítica da pobreza reinante, oriunda das estruturas sociais da Sociedade de então. Isso é coisa nossa, dos nossos tempos. Vivera tudo isso mais intuitivamente do que analiticamente.

Uma releitura do carisma franciscano tem que passar pelo crivo dos avanços das Ciências Sociais, pela crítica estrutural do mundo, da sociedade em que vivemos. Hoje, tornam-se insuficientes, de pouca credibilidade, ações e políticas públicas de cunho assistencialista. A metodologia de um autêntico trabalho social não pode carecer de uma análise crítica de como a Sociedade está ordenada, visando à sua transformação. Paulo Freire já nos ensinava que “alfabetizar é ensinar a ler a realidade visando à sua transformação”. Alfabetizar é criar novos revolucionários.

Nas Pastorais Sociais, usa-se o método VER-JULGAR-AGIR, assumido por parte do Vaticano II, adotado em Medellín e Puebla, boicotado em S. Domingos; e, agora, retomado pela Conferência de Aparecida. A história nos adverte que não adianta nadar contra a correnteza dos tempos. Pode dar câimbra nas pernas e na fé! Fazer pastoral, evangelizar sem conhecer o chão em que se pisa, como está estruturado, buscando alternativas mais justas e humanas, é burrice ou má vontade! O franciscano é, antes de tudo, um evangelizador. Nas Ciências Sociais fala-se de análise crítica da Conjuntura; de metodologia científica.

A fidelidade ao carisma franciscano em nossos dias exige do frade menor fidelidade à Realidade, solidariedade com os empobrecidos, marcar presença nas pastorais sociais e nos movimentos populares. Tendo o instrumental necessário para o trabalho, sem deles se apropriar. Assistencialismo é coisa emergencial, pontual e não estrutural. Francisco de Assis, além de patrono da Ecologia, para nós, seus irmãos, é o patrono dos excluídos da História (D. Helder Câmara).

(1) Texto publicado na Revista Santa Cruz, órgão de comunicação da Província da Santa Cruz de Minas Gerais maio/junho de 2008, p.168-170.
(2)
Frei Cristóvão Pereira é frade da Província da Santa Cruz, em Minas Gerais. É assessor de movimentos sociais e membro do Movimento Fé e Política.

Ilustração: Plaque de reliquaire : saint François d'Assise recevant les stigmates ; vers 1228 -1230

Texto extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/sefras/artigos/2008/02.php acesso em 11 mar. 2009.


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