Pe. João Batista Libânio
I. Lugar da Teologia para além dos muros
A teologia acostumara-se durante séculos a pensar-se num lugar de onde descortinava todos os horizontes do saber. Para ela convergiam as ciências e dela hauriam luzes. Como se adjetivara de divina, imaginava habitar lugar onisciente.
A própria Universidade nasce tendo-a como coração e centro. E algumas universidades européias refletem ainda tal relevância da teologia. Enfim, nada lhe parecia limitar a pretensão de dizer a última e definitiva palavra sobre a verdade. E quem diz definitiva, entende estabelecer o "fines" – o limite - dos conhecimentos.
Veio a modernidade. Explodem as ciências que vasculharam o mundo astronômico nas pegadas de Copérnico, Galileu Galilei, matematizando as realidades na esteira de Newton e escrutaram as interioridades do eu com S. Freud.
Desenhou-se amplo mapa das ciências, o qual não parou de crescer até o dia de hoje. De tudo isso surdiu a evidência: o saber fragmentou-se inexoravelmente. Cada ciência administra determinado território e não domina a totalidade do reino. Dito de maneira técnica, cada ciência possui lugar epistemológico limitado. A imagem é dada pelo lugar físico. Se nos pomos em determinado lugar, percebemos uma paisagem bem definida, mas não conseguimos ver outras. Neste sentido, todo lugar físico, ao mesmo tempo, possibilita e interdita, permite e impede de ver certas realidades. Situando-nos no palco em face do público, vemo-lo, mas não conseguimos perceber as belíssimas imagens do telão que está às nossas costas. E se viramos para ele, o público desaparece. Limite necessário de todo lugar físico.
Tal imagem vale de cada ciência. Todo conhecimento, ao dar-se num lugar, possibilita ver um ângulo da verdade, mas ao mesmo tempo impede de ver outro. A psicologia profunda possibilita-nos, permite-nos desvendar pulsões inconscientes, mas desconhece o universo da quimicidade das substâncias postas em movimento pela depressão. O químico descobre na euforia a serotonina, mas não capta nenhuma experiência passada provocadora do sentimento. E assim por diante.
Então, cabe a pergunta: qual é o lugar da teologia? Que ela vê e que ela não consegue abarcar? Em que ela possibilita a inteligência de conhecer e em que deve calar no silêncio do não-saber?
Lugar da teologia
A teologia trabalha com o sentido último e radical da existência, que todos chamam de Deus, diria Santo Tomás na simplicidade dos tempos medievais. Vê tudo à luz da revelação de Deus. Nada lhe é estranho ao olhar desde a perspectiva da autocomunicação de Deus à humanidade ao longo da história. Tudo lhe escapa da competência quando estudado no nível empírico dos fenômenos, no estrito sentido histórico e filosófico. Diante de tais saberes ela se cala ou, se quisermos, assume-os como elementos oferecidos pelas outras ciências e contempla-os sob o olhar de Deus.
Seu objeto próprio é a fé. Fides quaerens intellectum - fé que busca inteligência - Ela é a fé que se volta sobre si mesma e busca inteligência, compreensão, aprofundamento. Navega pelo mar da fé com a nave da razão.
A tradição da Igreja formulou de modo simples e expressivo com o jogo de duas expressões - lex credendi (norma da fé) e lex orandi (norma da oração) - a relação entre teologia e fé. Os orientais preferiam iniciar pela lex orandi para chegar a lex credendi. Cremos porque rezamos. No início estão a oração, a fé vivida, depois vêm a fé pensada, a teologia. O ocidental, marcado pelo predomínio da razão, estabelece os cânones da fé e segundo eles reza. Pensa a fé, teologiza, para melhor crer. Nos dois casos, fé pensada e fé vivida, razão da fé (teologia) e oração (vida da fé) entrelaçam-se.
A fé tem história e geografia. A teologia também. Não se crê em tempo sem tempo, num lugar sem lugar, mas no cruzamento das coordenadas de tempo e lugar. E a teologia, que um dia se entendeu perene, hoje sabe perfeitamente que é bem localizada. A teologia que hoje fazemos se planta na América Latina. Não é toda a teologia, mas de nosso continente. E localiza-se no momento que vem depois do Vaticano II, Medellín, Puebla e Santo Domingo a caminho de Aparecida.
A partir de outra perspectiva epistemológica, a teologia é resposta. Nenhuma resposta se entende sem conhecer a pergunta. E a pergunta da teologia chama-se antropologia. À medida que o sentido comum e a filosofia modificam a compreensão do ser humano, a teologia se arranja diferentemente. A atenção do teólogo oscila entre dois pontos: que antropologia a teologia implica ou que teologia precisa construir-se para dar conta de nova antropologia.
Teologia cristã
A teologia cristã funda-se na fé cristã. Dizer cristã significa abraçar os mistérios fundamentais do Cristianismo. Para Paulo na epístola aos Efésios, há o único mistério da vontade de Deus e do seu desígnio benevolente de levar os tempos à plenitude, reunindo o universo inteiro sob um só chefe, o Cristo (Ef 1, 9s). Tal mistério estava escondido em Deus e agora foi revelado (Ef 3, 3-10).
O desenrolar do mistério permite que distingamos traços fundamentais que marcam a fé: trinitário, encarnatório/sacramental, pascal, pentecostal, eucarístico, eclesial, ecumênico, mariano, escatológico. Cada adjetivo revela, por sua vez, determinada qualidade da teologia cristã. Ela é trinitária no sentido de pensar a Deus "na comunhão dos Três e não na solidão do Um" ([3]). Como encarnatória e sacramental, enquanto capta o divino no humano. "Humano assim, só pode ser Deus mesmo" ([4]). Sacramental porque apreende a graça no sinal visível e este significa e realiza a graça. Pascal ao anunciar a vida para além de toda morte das pessoas, dos povos. Eucarística ao entender que o Senhor se entrega a nós para que nos entreguemos aos irmãos. Eclesial, ao apontar a Igreja como onde se recebe, se vive e se transmite a fé sobre a qual se teologiza. Ecumênica porque só é cristã a teologia que se abre às diversas expressões de fé. Mariana, ao entender Maria na encruzilhada da oferta do projeto de Deus e da recepção da liberdade humana. Escatológica porque a fé inicia a vida eterna já na história e se plenifica para além dela. Cada um dos aspectos merece tratativa que breve palestra não comporta. Ficam aqui os adjetivos para eventuais aprofundamentos.
Teologia católica
O epíteto de católica necessita explicitações. Toda teologia, enquanto se refere a Deus, à verdade da revelação, necessariamente possui dimensão de universalidade. Portanto, católica no sentido lídimo da etimologia - kat&940; + O+[loj - segundo o todo. Na há teologia totalmente regional, porque Deus é universal, absoluto, de sempre e para sempre. Ela mostra o aspecto definitivo e universal da verdade, consciente, porém, das próprias balizas.
Quem faz teologia padece dos limites de tempo e espaço. Por conseguinte, toda teologia sofre de parcialidade histórica e geográfica. Mais: a teologia católica pós-tridentina assumiu a tarefa da defesa da instituição, do magistério. Pôs-se a serviço da justificativa apologética da fé segundo a tradição católica em oposição à Reforma e aos reclamos da modernidade. Carregou-se de muitos elementos ideológicos, ao universalizar o particular da Igreja católica em que pese o nome de católica.
Veio o Concílio Vaticano II. Soprou dentro da teologia católica ares frescos que a impeliram para outra direção. Nunca se superam totalmente os traços ideológicos, mas a consciência crítica diminui-lhes a incidência. O Concílio Vaticano II, em espírito de diálogo ecumênico, inter-religioso e com o mundo moderno, engendrou teologia bem diferente da neoescolástica tridentina.
Teologia acadêmica civil
Fato novo na cultura acadêmica brasileira. Nos idos de 60, Darci Ribeiro tinha pensado a Universidade de Brasília com um Instituto de Teologia que seria confiado aos frades dominicanos. As vicissitudes políticas do golpe militar abortaram o projeto. Teria sido a primeira tentativa de inserir a teologia no mundo acadêmico secular moderno do Brasil. A entrada da Teologia e das Ciências da Religião no mundo acadêmico brasileiro se fez pelo reconhecimento por parte do Estado brasileiro de programas de pós-graduação de mestrado e doutorado. Tal aconteceu mediante avaliação da CAPES, órgão do Ministério da Educação.
Mais recentemente foi concedida, em 1999, uma primeira autorização para o funcionamento de um Bacharelado em Teologia por parte do CNE (Conselho Nacional de Educação). Ele estabeleceu (CNE 241/99, de 15 de março de 1999) critérios para a autorização e reconhecimento dos cursos. Ainda está sob debate o reconhecimento do Bacharelado em Ciências da Religião e o de licenciatura em Teologia e nas Ciências da Religião ([5]). Na nova situação criada, a teologia adquire cidadania no concerto das ciências e profissões seculares. Multiplicam-se no país os cursos de teologia reconhecidos oficialmente pelo CNE de diferentes confissões cristãs.
Tal situação traz vantagens e riscos para a teologia. Aumenta-lhe a presença na sociedade acadêmica do país. No entanto, ameaça baixar-lhe o nível de suas exigências internas, transformando-a em avatares empobrecidos. Rodeiam-lhe interesses econômicos, tentações de comercialização que não casam bem com a ciência sobre a gratuidade divina da revelação. Enfim, o termo teologia padece de ampliação semântica tal que se marcam com tal etiqueta discursos díspares. O assalto a tal titularidade civil em teologia vem sendo deflagrado por denominações evangélicas de parca tradição teológica, mas de eficiente penetração apologética e mercadológica.
Para além dos muros
A teologia da América Latina possui já tradição original de mais de três décadas. H. Vaz formulara a expressão de que a nossa Igreja passara de situação de reflexo para fonte. Tal constatação vale da teologia. Até a segunda metade da década de 60, a teologia da América Latina bebia fundamentalmente em duas fontes. A mais abundante e que inundava a formação do clero nos seminários vinha da Pontifícia Universidade Gregoriana. Os manuais neoescolásticos de corte tridentino e apologético, que os professores da Universidade Gregoriana redigiam em Latim para os seus alunos, serviam de texto básico nos estudos eclesiásticos do resto do mundo. O clero do Brasil se alimentava do mesmo pábulo romano que a maioria do clero europeu.
Na Europa, porém, já se anunciavam nos séculos XIX e na primeira metade do século XX teologias tocadas pelos ares novos da modernidade. A Escola de Tubinga, com repercussão na Escola Romana, o modernismo do início do século XX, a teologia querigmática do Entreguerras e sobretudo a Nouvelle théologie, desenvolvida na França, ao lado de alguns teólogos alemães de ponta, tentaram diálogo positivo com a modernidade, enquanto a teologia acadêmica neoescolástica se fixara nos moldes medievais e tridentinos. Tais teologias desaguaram no Concílio Vaticano II, fecundando-lhe as melhores intuições.
A teologia em nossas terras apenas se deixara tocar, antes do Concílio, pelas novidades européias. Antes reinava certa desconfiança. No entanto, poucos anos depois do Concílio, jovens da JUC com plêiade brilhante e inteligente de assessores assimilam e avançam sobre a teologia européia, semeando os germes da teologia da libertação. Gustavo Gutiérrez, passando por estas terras e contactando-lhes o turbilhão de idéias, se inspira e lança em 1971 o livro programático da Teologia da libertação ([6]).
Ele refletia clima teológico já presente na América Latina em que nomes como J. L. Segundo, H. Assmann, J. Comblin estavam em plena produção inovadora. Ora, as sementes cresceram muito. Surgiu nova geração de teólogos como os irmãos Boff, J. Sobrino, P. Richard, S. Galilea, F. Taborda, R. Muñoz e outros tantos. As teologia feminina e negra vieram com originalidade libertadora reforçar essa torrente. E nos últimos anos, a teologia do diálogo inter-religioso e ecológica completou o quadro.
A teologia da América Latina não tem direito de esquecer e perder tal riqueza acumulada que serve não só as nossas igrejas e pastorais, mas atinge outros continentes. Verdadeiramente fora dos muros.
Não se vive do passado. Novos campos se abrem para a teologia da América Latina, além de firmar os campos mais recentemente explorados. Surde-lhe diante a provocante pós-modernidade. A racionalidade iluminista e positivista trouxera-lhe muitos dissabores e problemas de incompreensão, gerando atitudes rígidas de ambas as partes. Agora a racionalidade vê-se ameaçada por ondas irracionalistas, vindas de culturas não ocidentais, de reações emocionais, de ideologias e religiões fundamentalistas, de surtos terroristas, da enlouquecida indústria armamentista, do cultivo da droga, de reacionarismos fanáticos. Atenta-se contra a própria razão humana. E, por ironia da história, a teologia, tão combatida pela razão moderna, sente-se chamada a defendê-la como elemento interno de seu processo produtivo.
Finalmente, a teologia ao ser reconhecida oficialmente pelo Ministério da Educação e Cultura, como mencionamos acima, defronta-se com o imperativo de entrar em diálogo com as outras ciências no âmbito universitário, deixando a solidão dos seminários e instituições estritamente eclesiásticas. O debate pluridisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar desafia-lhe epistemológica, hermenêutica e tematicamente.
II. Teologia, história e sociedade
Concepções de história e pensar teológico
A teologia cristã e a história mantiveram relações bem diversificadas. Como conhecê-las? Seguirei o caminho didático de constatar diferentes sentidos de história e contrapor-lhes o papel da teologia. Método simples, sem as complicações e embaraços dos estudos históricos. Estudar historicamente a história não deixa de ser curioso e interessante. No entanto, supõe tratação que escapa dos limites da exposição.
Comecemos com o orador e filósofo latino Cícero (séc. I aC). História é magistra vitae - a mestra da vida. Perspectiva pedagógica. Como formar os jovens? Apresentar-lhes os modelos do passado. Construir-lhes a narração dos viri illustres - varões ilustres -, as mulheres infelizmente naqueles idos não entravam na maré dos exemplos. Ao ler-lhes a vida, a juventude sentir-se-á animada a trilhar caminho semelhante.
A tradição biblicocristã conheceu tal pedagogia. Paulo apresenta-nos Abraão como pai da fé. No Novo Testamento, tal tendência se firmou ainda mais. O querigma apostólico anunciou a Jesus Cristo, recolhendo-lhe os ensinamentos e as ações. O cristão, ao longo de todos tempos, lerá os escritos dos evangelhos como matriz para a vida. Paulo resume de maneira cortante: "eu vos exorto, pois: sede meus imitadores" (1Cor 4, 16). O que pareceria pretensão descabida, recebe a intelecção noutro momen "como eu mesmo sou imitador de Cristo" (1Cor 11, 1). Jesus no evangelho disse que "sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito" (Mt 5, 48) e na esteira da ordem-conselho de Jesus, Paulo simplesmente conclui: "imitai a Deus, visto que sois filhos que ele ama" (Ef 5, 1). A imitação dele que Paulo propõe lhe vem da consciência de que ele medeia a presença do Senhor como outros que se conduzem assim (Fl 3, 17).
Th. Kempis, no final da Idade Média (séc. XV), escreveu o pequeno livro da "Imitação de Cristo" que virá a ser um dos textos espirituais de maior divulgação e de ampla influência durante séculos até os dias de hoje.
A concepção fatalista da história, que transparece em tragédias gregas, teve influência na vida cristã a seu modo. No mundo pagão se acatava a moira (grego), o fatum (latim), que traduzimos por destino. Concebida como força ora anônima, ora personalizada, a ela se subordinavam seres humanos e divinos. Édipo, por exemplo, assassina o próprio pai Laio sem sabê-lo, segundo o enigmático vaticínio de Pítia, sacerdotisa de Apolo, para casar-se com a mãe Jocasta. A Providência divina da tradição cristã traduziu tal concepção histórica, ora de maneira quase mecânica, ora confrontando-a com o mistério de Deus.
O eterno retorno, que inspirava ritos religiosos na cultura agrícola, reduzia a história à matriz da natureza. A circularidade e a repetitividade inflexível da natureza fixavam os atos cúlticos. A liturgia e traços teológicos pagaram tributo a tal concepção de história, paradoxalmente não histórica, mas segundo o modelo da natureza. Estações do ano, fenômenos astronômicos sinalizavam o ritmo da liturgia, o sentido das festas a partir das quais se elaboravam reflexões teológicas.
A tradição judaicocristã desenvolveu a visão linear de história da salvação em que existe uma primeira palavra - criação - e uma última - escatologia e no intervalo se desenrola o drama da salvação pessoal e coletiva. A história ocupa papel relevante. A liturgia vinculava-se a celebrações de eventos históricos passados, atualizando-os na vida dos fiéis como garantia do futuro prometido por Deus. A teologia dos sacramentos concebe-se profundamente histórica. Entretanto ela se contaminou com a percepção cíclica da natureza por desconhecimento da íntima natureza do gesto sacramental. Para o judeu e cristão, Deus age na história em diálogo com a liberdade humana, diferentemente da intelecção primitiva do destino e da repetição da natureza.
A modernidade modificou significativamente a concepção de história em diversas direções. Desalojou Deus como sujeito agente e substituiu-o totalmente pelo ser humano. O antropocentrismo moderno não suporta o imiscuir-se da Transcendência no universo dos humanos mortais. Obrigou a teologia a reinterpretar o agir de Deus.
Certa leitura dialética da história humana entende-a como processo em que as negatividades se vão superando pela sua negação, atingindo patamares superiores até à plenitude histórica imanente. O nazismo anunciou um Terceiro Reino em que imperaria a raça ariana pura. O comunismo sonhou com a sociedade em que superadas as contradições do trabalho viver-se-ia o mundo da reconciliação completa. O capitalismo continua ainda pregando a felicidade pela vitória sobre as necessidades e desejos com oferta inaudita e ilimitada de bens materiais e simbólicos.
Os contínuos fracassos da concepção dialética, inteligíveis para a teologia cristã do pecado original, da redenção e da escatologia, têm desbancado do trono o reinado de tais pretensões totalitárias.
O historicismo partiu para outro extremo. Submeteu a história ao bisturi da análise factual e contentou-se com ela. Esqueceu o sentido e, sobretudo aquele que transcende o horizonte imediato do presente humano. A teologia, quando se contenta com o histórico das narrações bíblicas, feliz de prender-se a ele, sucumbe à tentação historicista. E como muitos eventos escapam de tais análises, facilmente ela se recolhe de mãos bem vazias. E com isso julga não poder dizer muita coisa, esquecendo que o importante é captar a mensagem teologal da revelação para além do factual que nos escapa.
Para a teologia, a história tem realidade sacramental. Santo Tomás define o sacramento como signum rememorativum, demonstrativum et prognosticum - sinal que recorda o passado, que aponta o presente e que anuncia o futuro. A história guarda a memória das gestas de Deus. A vida, a paixão e a morte de Jesus pertencem à história passada. A ressurreição já ingressou na fase definitiva da eternidade. Portanto paira no horizonte de esperança para todos nós. A fé cristã e a teologia vivem dessa da realidade: a realização das obras de Deus que sempre são passadas, que a vida sacramental atualiza e que deixa no coração do fiel a certeza de que o futuro está garantido e contido no próprio sacramento. Tal concepção de história preside à visão cristã. Dela se alimentam a teologia e a vida do fiel.
Teologia e sociedade
Tema amplo que apenas menciono à guisa de aceno. Caracteriza a atual sociedade brasileira o fato da simultaneidade de tempos culturais. Existem remanescentes da cultura agrária tradicional que persistem plasmando a concepção de Deus, de fé, de religião do povo. Aponto alguns sinais da imagem de Deus que rotiniza a vida do cristão. Deus se posiciona diante de nós quase como um de nós, só que infinitamente poderoso. Regateia conosco. Só nos dá o que lhe suplicamos com insistência. Fica à espera dos pedidos no sentido literal da parábola do amigo importuno que pede pão (Lc 11, 5-8). Deus todo-poderoso intervém pontualmente na história de maneira arbitrária e até segundo o próprio humor e capricho, ora bondoso, ora irritado. Deus último recurso quando falham os remédios humanos. Reserva infinita de nossos capitais finitos. É um Deus carente dos nossos louvores e que se torna propício se eles vierem .
A sociedade moderna com a concepção de autonomia do sujeito, capaz de transformar a realidade, refuga tais resquícios tradicionais. E elabora-se a relação entre transcendência e imanência de Deus de outra maneira. Deus faz o ser humano ser ele mesmo e respeita-lhe a autonomia em diálogo de amor e de liberdade. É a visão que predomina hoje.
Caminhamos para a sociedade pós-moderna: sociedade do conhecimento em que o conhecimento se torna a realidade mais importante. Não importa que tipo de conhecimen tecnológico, artístico, desportivo, científico, religioso. Tem futuro quem detém algum tipo de conhecimento de maneira exímia. Os outros irão a reboque. Com isso, a distância entre países e indivíduos ricos e pobres aumentará.
A fé cristã introduz outra concepção do conhecimento. Não existe fundamentalmente em benefício de quem o possui, mas para o bem e salvação de todos. Conhecimento para s. João refere-se à verdade que se identifica com a revelação. E revelação é a auto-manifestação de Deus todo amor. Conhecimento se mede pelo critério do amor e não pelo da produtividade, da eficácia, como acontece na sociedade atual do conhecimento.
III. Teologia e universidade
A universidade pretende ser a encruzilhada dos diversos saberes em busca do universal. Nasceu na Idade Média, tendo a teologia como coração. A teologia pensa a realidade a partir de Deus. Deus é universal nos atributos de bem, verdade, sentido. É o universal mais concreto que existe. Todas as realidades dele participam e para ele tendem. A universidade centrada na teologia cumpria com facilidade ser o lugar do universal.
Veio a modernidade. Lentamente cada rincão científico se desligou da raiz teológica e se constituiu na singularidade especializada de seu saber. E cada saber se dividiu e continua a dividir-se em especializações cada vez mais sofisticadas e fragmentadas. Foi-se o saber universal.
A pós-modernidade embarca em outra nave. Sente a necessidade de visão universal. Busca-a promovendo o olhar pluridisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar em vista de leitura universal da realidade, submetida a tanta fragmentação. Outro caminho se construi por meio do interesse humanista. Na linguagem de E. Morin, entra em jogo a posição do especialista e do generalista. “Penso que no plano das idéias, temos a escolha. Seja decidimos de ser especialista, uma situação totalmente confortável intelectualmente já que nos é suficiente acumular cada vez mais informações sobre um ponto cada vez mais preciso: termina-se então, como o diz o dogma, por saber tudo do nada. Seja decidimos ser generalista, isto é, meter o nariz, um pouco a cada vez, na física, na química, na biologia, na medicina legal, na psicologia: termina-se então não ser especialista em nada, mas tem-se a melhor opinião sobre a pessoa humana com que defrontamos e que se chama “homem”. Duas atitudes, duas políticas do saber totalmente diferentes”.
Noutro momento, o mesmo autor cita o economista Hayek que percebeu a limitação do especialista e afirmou: “Ninguém pode ser um grande economista se for somente economista”, “um economista que só é economista torna-se prejudicial e pode constituir um verdadeiro perigo” ([10]). Neste sentido, a teologia contribui na universidade para os saberes romperem os limites fechados da especialização e abraçarem interesses humanos amplos.
Universalização e globalização
Merece atenção especial a confusão comum entre universalização e globalização. Globalização no campo cultural não significa universalização, mas unicamente difusão e divulgação de particularidades por meios tecnológicos de amplo alcance. Globalizam-se fundamentalmente elementos exóticos ou os que são notícia. E notícia atraente tinge-se de violência ou invade a privacidade, especialmente sexual de figuras mundiais, ou explode em guerras, ou afeta as paixões populares por esporte ou música. A globalização privilegia campos como estes ou afins.
Milhões de mães acalentam o filhinho à noite. Não é notícia. Não se globaliza. Uma mãe desesperada joga o pequenino nas águas sujas do Tietê e torna-se notícia nacional. Milhares de festas se celebram. Se nalguma bacanal está presente um político sob mira ou um artista ou modelo ou alguém dessa estirpe torna-se notícia e é globalizada.
Universalização se refere a valores. No particular de um ato concreto percebe-se aí algo que o ultrapassa. Teresa de Calcutá recolhia moribundos nas sarjetas da cidade para que morressem limpos na cama. Isso não era globalizado, mas era universal. Aí acontecia o valor universal do amor, da solidariedade, da opção pelos pobres e marginalizados.
A teologia tem dois olhares diferentes em relação à globalização e à universalização. Sente-se em casa quando se trata do universal. Esta é sua vocação. A fé, embora se exprima em formas concretas, limitadas, históricas e, portanto, singulares, toca valores universais. Pois vê a realidade à luz de Deus, o universal dos universais.
A universalização deve muito à inspiração cristã. O universal pertence mais à tradição cristã que à razão grega. Esta conhecia ainda um universal, por assim dizer, limitado. Falava unicamente às elites masculinas. O Cristianismo insere no universal todos os seres humanos até os mais desprezados. Antes descobre neles o universal do amor de Deus. E os evangelhos de Marcos e Mateus terminam com mensagem universal. A salvação proposta pelo Cristianismo dirige-se a todos os seres humanos de todos os tempos. “Não é necessário ser exegeta para dar-se conta de que as Escrituras cristãs contêm uma mensagem de universalidade que ultrapassa os limites estreitos da vida cotidiana e étnica para abranger o mundo inteiro”.
Diante da globalização, a teologia assume a típica atitude de discernimento. Pergunta-se: que se globaliza, como se globaliza, em vista de que se globaliza? A partir das respostas, faz as considerações. Em relação ao conteúdo. Quando se globaliza uma realidade que encerra um valor, então ela aí se encontra, ao apontar-lhe o universal. Está em casa. Quando a globalização envenena a compreensão da realidade com a deturpação dos valores, assesta a bateria crítica.
Reflexão sobre o meio que transmite. Mesmo quando se globalizam celebrações litúrgicas, valor importante das religiões, conforme os meios de difusão, a mensagem se deturpa. O conteúdo continua válido e sagrado, no entanto jogado na roda-viva midiática se corrompe, banalizando o que não suporta a banalização. Campo difícil de discernimento para nós católicos são as celebrações eucarísticas na televisão. Existem argumentos de peso tanto a favor como contra tais transmissões.
A finalidade da globalização. Reina inconteste no momento atual cultural o mercado. Tudo se mede por dinheiro. Dinheiro na midiática chama-se pesquisa de opinião. Programa ou notícia que consegue maior audiência aumenta o poder de barganha. Os especialistas em marketing sondam a sensibilidade, os interesses, as afinidades das pessoas para responder-lhes com a oferta correspondente. Qualquer notícia ou programa que consiga audiência elevada interessa à TV. Aí as propagandas que se lhe colam custam mais caro. É isso que interessa. Nessa perspectiva, a finalidade principal da globalização contradiz na raiz a causa evangélica e só por acaso a serve. Haja vista o uso que certas denominações neopentecostais fazem dela para impor-se sobre outras com escandalosas intenções financeiras.
Teologia e os particularismos
A globalização, mais que a universalização, tem gerado reações opostas. A Iugoslávia, unificada e reduzida ao comum de um centro, esfacelou-se em inúmeros territórios. A sua particularidade étnica, religiosa, ideológica não tinha sido respeitada pelo governo comunista de Tito. Bastou fraquejar a força de coesão que as regiões se separaram. Há centralizações globalizantes dominadoras que acalentam separatismos. Fenômeno semelhante aconteceu na União Soviética depois da queda do comunismo. E em grau menor existe em vários outros países europeus.
No campo religioso e ideológico, a pretensão universal tem provocado integrismos e fundamentalismos particulares. Eles, por sua vez, arrogam-se ser a única verdade. O único identifica-se com universal. E o processo rompe-se por dentro em sempre novas identidades. Cada uma gostaria de ser a única. Como não o consegue por convicção, lança mão da violência.
Extraído de http://www.procamig.org.br/home.php?sessao=0003&indice=126 acesso em 31 mar. 2009.
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