Frei Neylor J. Tonin
Francisco nasceu em 1181 ou 1182, em Assis, pequena cidade da região Úmbria, dependurada nas encostas do monte Subásio, tendo a seus pés o risonho Vale de Spoleto. Seu pai, Pedro Bernardone, a quem a tradição impiedosamente qualificou de furibundo, truculento, cruel, avarento e feroz como um lobo, era comerciante de tecidos e queria que seu filho seguisse sua profissão. Mas Francisco, por temperamento, não se dava bem com a exatidão das contas, requisito básico para a manutenção lucrativa de qualquer negócio. Se bem que fosse "um negociante esperto", segundo seu biógrafo Tomás de Celano, "era também um gastador imprudente", o que preocupava e agastava sobremaneira seu pai. "Não ajuntava dinheiro, mas dissipava os bens. (...) Era rico e não fazia economias, mas era pródigo". Seu pai o admoestava, mas ele, pouco se importando, queria ser o rei da juventude. "Superava os jovens de sua idade nas frivolidades e se apresentava como incitador para o mal e um rival em loucuras. Todos o admiravam e ele procurava sobrepujar aos outros no fausto da vanglória, nos jogos, nos passatempos, nas risadas e conversas fúteis, nas canções e roupas delicadas e luxuosas".
A este período de sua vida é que Francisco chamará, mais tarde, de "tempo de pecado". Mas aqui se faz necessário um parêntese, para um esclarecimento sobre a hagiografia cristã, ou sobre a arte de escrever-se a vida de um santo. Cada época conheceu um estilo literário característico para exaltar os seus santos, acentuando verdades que subjaziam a sua determinada compreensão teológica. Nos séculos XVIII e XIX, por exemplo, as biografias tentam mostrar como toda a vida é santa; a pessoa já está marcada, mesmo antes de nascer, pela graça de Deus; cada ser carrega dentro de si uma estrutura crística, pela qual os santos darão uma resposta cabal, desentranhando-a e fazendo-a palpável, ao longo de seus dias.
Para destacar esta graça de Deus, os santos, mesmo quando ainda crianças, já apresentam "indícios" claros de santidade como, por exemplo, não mamando nas sextas-feiras, persignando-se já em tenra idade, balbuciando os nomes de Jesus e Maria, antes mesmo de papai e mamãe. Isto, naturalmente, não quer dizer que assim tenham procedido. Analisadas estas vidas, a partir de seu fim, quando eram inegavelmente santas, são elas, pelos hagiógrafos, apresentadas santas desde o começo. Os milagres da infância não são reais, mas toda a vida é entendida como santa, porque santa ela foi, desde o começo, pela graça de Deus e, posteriormente, pelo despojamento de suas vontades por parte do biografado.
Um outro esquema de santidade, que obedece a um estilo literário bem diferente, mas definido, era usado na Idade Média, onde se ressaltava principalmente o momento da conversão. Carregava-se, então, negativamente nas cores daquela primeira fase conhecida como "tempo de pecado", para depois, nos capítulos subseqüentes, ressaltar-se a verdadeira grandeza do santo, a partir de uma ação direta de Deus e de uma radical adesão de seu eleito. Trata-se, sem dúvida, de um expediente literário, embora não possa sempre ser reduzido só a ele. Francisco, acreditam todos, não terá sido um devasso.
Embora destacando suas qualidades humanas - "era muito jeitoso e afável, agia com humanidade" - o hagiógrafo deseja, nos parece, tão somente apresentar um "antes" e um "depois" em sua evolução espiritual, dando a primazia desta evolução à ação de Deus. A santidade em um caminho. Ninguém nasce santo sozinho, pelas próprias forças. Ora, é exatamente isto que se verifica nas biografias sobre ele, compostas seja por Tomás de Celano, seja por São Boaventura. O que nelas se ressalta é que Francisco foi um jovem normal, com grandes sonhos cavaleirescos, tentado pela glória e irrefletido na busca de tais ideais.
Frei Neylor J. Tonin
Esta série de artigos está sendo impressa no "Boletim do Pró-Vocações"
Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/artigos/pvf_parte1.php acesso em 15 fev. 2009.
Ilustração: VIMEUX, Jacques-Firmin. São Francisco em baixo-relevo. Entre 1775 e 1779.
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