Por Frei João Mannes, OFM
A Ordem dos Frades Menores celebra, em 2009, o VIII Centenário de sua Fundação. Pois, foi em 1209 que São Francisco obteve do Papa Inocêncio III a aprovação oral do seu projeto de vida evangélica, ou daquilo que mais tarde seria chamado de Proto-regra. No projeto de celebração do jubileu ("A graça das origens"), prevê-se que no período de 2008-2009 sejam dados graças e louvores a Deus pelo dom da vocação de viver segundo a forma do santo Evangelho (Test 14), bem como por todos os benefícios recebidos, conforme admoesta o apóstolo Paulo: Em todas as circunstâncias dai graças porque esta é a vontade de Deus em Jesus Cristo (1Ts 5,18). Tudo o que corresponde à vontade de Deus é bom e, por isso, é bom dar graças ao Senhor e entoar um hino ao teu nome, ó Altíssimo, proclamar de manhã tua benignidade, e tua fidelidade durante a noite (Sl 92,2-3). Sem cessar, portanto, bendize, ó minha alma, ao Senhor, e não esqueças nenhum de seus benefícios (Sl 103,2).
Neste clima de ação de graças pelos oitocentos anos do carisma franciscano, evocamos um dos filhos mais ilustres de Francisco: São Boaventura. Aqui limitamo-nos a destacar a sua valiosa contribuição, como Ministro Geral, na refundação teórica e prática da Ordem. De fato, era gritante a decadência do testemunho cristão de muitos frades da época. Por isso, Boaventura fez aprovar, no Capítulo Geral de Narbona, em 1260, as Constituições da Ordem, já publicadas em 1239, porém com algumas inovações para responder aos novos desafios que haviam emergido no seio da Ordem, da Igreja e da sociedade. E, através dos seus opúsculos místicos, procurou reconduzir os frades ao ideal primitivo da Ordem,
isto é, à profunda experiência de fé de Francisco e da fraternidade primitiva no seguimento e na imitação de Jesus Cristo.
Na Carta Sobre a Imitação de Cristo (Epistola de imitatione Christi), atribuída a Boaventura, mostra-se Jesus Cristo como o caminho à perfeição da vida, como também enumera-se muitos motivos pelos quais dever-se-ia incessantemente dar graças a Deus. Porém, inicialmente, destaca-se que se deve repugnar veementemente a atitude de ingratidão, porquanto é a raiz de muitos males. Dos males que derivam da atitude de ingratidão sobreleva-se a sensação de raiva, inveja e rancor em relação àquele que concede-nos benefícios. Por isso, a ingratidão é, antes de tudo, um sinal fortíssimo de rejeição a Deus, o Senhor e doador de todos os bens.
Por outro lado, entre os vários benefícios outorgados por Deus, está o inestimável dom da vida de todas as criaturas. A vida de todos os seres emerge continuamente do mistério abissal da gratuidade divina que funda a existência finita sem porquê nem para quê, como a rosa da poesia de Angelus Silesius que diz: A rosa é sem porquê, floresce por florescer, não olha para si mesma e nem pergunta se alguém a vê. Contudo, princípio de maior louvor e gratidão é que o ser humano seja capaz de conhecer, de amar e de bendizer a Deus e, assim, de corresponder à benevolência do amor criador que desde toda a eternidade amou, quis e pensou a criatura. Enfim, é motivo de grandíssima gratidão termos sido criados à imagem e semelhança de Deus, isto é, chamados do nada a existir no tempo e do tempo à vida eterna e perfeita em Deus que graciosamente comunica todo o seu ser a cada. Todavia, a gratuidade divina revela-se à criatura humana sobretudo em Jesus Cristo encarnado, que, incondicionalmente entregou a sua vida por nós elevando-nos e reconduzindo-nos, assim, para a união consigo, fonte de toda a vida. O caminho da humanidade à perfeição é, portanto, Jesus Cristo, que andou pelos caminhos da profunda humildade, da extrema pobreza e da perfeita caridade.
Por fim, em tempos de re-fundação da Ordem, ou de celebração da graça das origens, recomendamos que não se faça uma mera reflexão racional do trecho da Epístola de Boaventura que transcreveremos logo abaixo, mas uma leitura existencial, ou seja, que se leia o texto com a atitude de um cristão que intrepidamente quer saber como se deve viver e o que se deve fazer hoje e em todos os tempos para chegar à perfeição da vida na sequela Christi:
"Irmão, assim rezava Santo Agostinho ao Senhor Jesus Cristo: Eu sei, ó Senhor, que a ingratidão muito vos desagrada, porquanto ela é a raiz de todo mal espiritual, é como um vento que desseca e cresta o bem, e ela obstrui a fonte da divina misericórdia no homem. Nascem da ingratidão muitos males e por sua causa morrem as obras vivas que já não se conseguem mais. Sendo, pois, a ingratidão a causa de todo mal, convém que o homem seja agradecido a Deus pelos benefícios recebidos. E quanto maiores são os benefícios, tanto maiores também devem ser as ações de graças, porquanto, anota São Gregório: À medida que crescem os dons, crescem também os motivos de gratidão. Para conheceres, pois, quão obrigado estás a dar graças a Deus, passemos em revista os benefícios que te foram outorgados pelo Senhor.
Deus te criou, remiu e chamou ao seu santo serviço. Considera, primeiro, de onde ele te chamou. Ele te chamou do mundo cheio de misérias, cheio de laços diabólicos para levar as almas às penas da condenação eterna. Considera, em segundo lugar, para que te chamou. Certamente te chamou para que o louves e o ames. É um grandíssimo dom, porquanto nele consiste o ofício dos anjos, que outra coisa no céu não fazem senão louvar e amar a Deus. Concluiu daí, como deverás viver, desde que és chamado ao ofício dos anjos. Deus te chamou das misérias do mundo e te pôs e conduziu no caminho direito e seguro que te leva para a vida eterna. Grandíssima graça é esta que Deus nos fez por sua imensa bondade.
Porém, se os chamados à vida eterna perguntam e dizem: Senhor, tu nos criaste e chamaste para possuirmos a vida eterna; que devemos fazer, a fim de possuí-la? Ele lhes responderá: Eu preparo para vós um reino, assim como meu Pai o preparou para mim (Lc 22,29). Vejamos como o Pai lhe preparou o reino e por qual caminho ele andou. Se diligentemente considerarmos o caminho de Cristo, que é espelho sem mancha (Sab 7,26), acharemos que andou, primeiro, pelo caminho da profunda humildade; em seguida pelo caminho da extrema pobreza; terceiro, pelo caminho da perfeita caridade (...).
Em primeiro lugar, Jesus Cristo andou pelo caminho da profunda humildade, pois chegou a humilhar-se a ponto de lavar os pés aos seus discípulos (Jo 13,4ss.). Se, portanto, o próprio Filho de Deus, o rei dos anjos, se humilhou até ao vilíssimo ofício de se abaixar aos pés de seus discípulos, considera quanto nos convém humilhar-nos. Não é grande coisa humilhar-se alguém perante um superior ou um igual; mas humilhar-se perante um inferior é merecimento muito maior. É este um modo pelo qual o homem pode adquirir depressa grandes graças e tornar-se rico no amor de Cristo; porque, quanto mais se humilha o homem, tanto mais o exalta Deus. Saibas, meu irmão, que se alguém andasse solícito em se humilhar, ganharia mais graças em um mês do que outro em quarenta anos. (...).
Em segundo lugar, a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, foi de extrema pobreza. Por isso disse São Bernardo: Repassa toda a vida do Salvador, desde o presépio de Belém até o patíbulo da cruz, e não encontrarás nela senão a maior pobreza. Daí, quanto mais pobre é alguém, tanto mais se assemelha e se chega a Deus. Perguntado São Francisco de Assis o que mais facilmente conduzia o homem à perfeição, respondeu que a pobreza.
Em terceiro lugar, Nosso Senhor Jesus Cristo teve perfeita caridade. A caridade com que nos amou é que o fez descer do céu à terra. Foi a caridade a corda que o teve atado à coluna quando por nós foi cruelmente açoitado. Mais nos amou a nós do que a si mesmo, porquanto quis morrer para que nós tivéssemos a vida; quis ser vendido para nos resgatar do poder do demônio; entregou sua alma e seu corpo por nós. A caridade é o sinal que faz conhecer se alguém é verdadeiro discípulo de Cristo, pois assim disse o Senhor: Nisto conhecerão todos que sois discípulos meus: se vos amardes uns aos outros (Jo 13,35). A caridade é o que torna o homem filho e discípulo de Cristo.
Consultou-se a um santo padre, qual era a causa por que, embora trabalhando dia e noite, não chegamos à perfeição como chegaram os antigos? Retrucou-lhes o santo: Os nossos antigos padres tinham o seguinte: cada qual queria mais o consolo do próximo do que o próprio, e por isso elevaram-se a grande perfeição. Nós, porém, trabalhamos muito e não nos adiantamos nada, porque cada um procura o seu próprio consolo e utilidade e não o consolo e a utilidade do próximo. Se desejas, pois, adquirir grande perfeição dentro de pouco tempo, procura servir a teus irmãos em todas as coisas que puderes e mais estima o consolo e a utilidade alheiado que a própria (in: Obras Escolhidas. Porto Alegre: EST, 1983, p. 471-474).
Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/artigos/mannes_240708/ acesso em 15 fev. 2009.
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